A fresta no assoalho era ligeira, mas permitia-lhe ver que o avô não estava a conseguir controlar o medo. Os seus olhos estavam gélidos e o discurso tropeçava cada vez mais, especialmente quando deparou com a nova afirmação do homem de fato negro.

– Temos imagens que comprovam o teu crime!

O velho jurou inocência e olhou desconsolado para o chão, quando foi ameaçado de lhe ser confiscada a sua quinta, que já passava de geração em geração há mais de 100 anos. O seu olhar ultrapassava a rusticidade das tábuas. Sabia que lá em baixo estava a sua mulher, o seu neto e a sua neta. Mandara-os esconder-se no porão, assim que viu o homem de fato negro estacionar junto à sua porta.

– Desmente lá isto!

O homem de negro colocou um tablet no balcão, com um vídeo da família do velho a semear milho nos campos.

– Sabe bem que é ilegal reutilizar sementes. Não temos registo de ter efetuado qualquer compra no presente ano oficial de cultivo, logo infringiu a lei. A nossa corporação tem assim bases legais para processá-lo por Pirataria Agrícola.

Cá de baixo, o neto via o rosto do avô cada vez mais pálido e temia vê-lo desfalecer. Sabia que ele estava a mentir. Ele estivera presente na reunião à lareira onde o avô partilhou com a Família a sua decisão. Ele tentara cumprir a lei ao longo dos anos, mas tinha-se tornado insustentável. O preço das sementes era caríssimo, não havia outras permitidas no mercado, tinha de comprar aquelas. E custava-lhe seguir a lei que estipulava que todos os anos tinha de comprar sementes novas, mesmo que lhe tivesse sobrado meio saco da semeia do ano anterior.

O neto baixou os olhos e pousou-os no rosto da avó. Estava triste, numa tristeza que continha tanto de revolta como de resignação. Aprendera a semear em tenra idade, com a mãe, que por sua vez aprendera com a sua mãe, e por aí fora, numa longa linhagem de transmissão de sabedoria da terra. Semeavam na primavera, colhiam no final do verão, depois apanhavam as sementes e limpavam-nas durante o inverno, para as voltar a usar na próxima primavera. Sempre fora assim, um ciclo natural da agricultura com séculos de idade, que tinha sido interrompido no momento que a corporação obteve autorização para patentear as suas sementes. Eram alteradas geneticamente para resistir ao impacto negativo dos herbicidas e para poderem florir até em terrenos áridos. Essa era a promessa, mas a realidade acabou por ser outra.

A sua utilização alterou os ecossistemas e viciou os solos, que passaram a rejeitar todas as outras. Nos solos não viciados, a corporação deu a volta à questão. Através do favorecimento político, conseguiu tornar as sementes naturais ilegais. Apenas as certificadas podiam ser usadas.
Muitos desses políticos agora trabalham para a corporação, mas no meio do sofrimento quotidiano, já ninguém se lembra dessas ligações.

A corporação aproveitou o monopólio para inflacionar os preços, mas não ficou por aqui. Decidiu que as suas sementes patenteadas teriam de ser compradas todos os anos. Os agricultores estavam proibidos de reutilizar as sementes que tinham à disposição na terra, após a colheita. Mesmo que ainda tivessem sementes por utilizar no saco, era obrigatório destruí-las e comprar um saco novo.

Ano após ano, o avô tentara cumprir a lei, mas já não dava. Na primavera passada, olhou para o saco meio cheio na prateleira da arrecadação, que tanto lhe custara a comprar e não resistiu. Reuniu a família e semearam de noite, como bandidos que se tentam camuflar na escuridão.

Hoje, descobriu que a Polícia das Sementes também usa câmaras com visão noturna. Já não sabe mais o que argumentar. As imagens são irrefutáveis.

– Pronto, está bem, eu aceito pagar a multa – diz, desconsolado, enquanto assina o papel da admissão de culpa. O olhar cada vez mais pesado volta a pender para o chão. Não faz ideia quanto é o valor, não sabe como isso vai afetar a subsistência dos entes-queridos escondidos no subsolo, mas sabe que não tem qualquer hipótese de sobreviver a uma luta judicial contra a corporação.


A realidade imita a ficção

Parece um argumento de um filme passado num futuro distópico. No entanto quase poderia dizer-se que é a realidade quotidiana de muitos agricultores no mundo. Milhares têm enfrentado uma luta desigual com as multinacionais que cada vez mais controlam a agricultura.

A Monsanto é um gigante empresarial líder na adulteração genética de sementes e detentora de centenas de patentes na área da biotecnologia. Outrora uma empresa de químicos, produziu algumas das substâncias mais tóxicas conhecidas, como a dioxina (considerada cancerígena pela Agência Internacional de Pesquisa do Cancro em 1997), os Pcbs (uma neurotoxina e “provável cancerígeno”, segundo a Environmental Protection Agency), e até o famigerado Agente Laranja, um herbicida tão potente que foi usado pelas forças militares americanas para debastar florestas na guerra do Vietname (foram alvos de inúmeros processos por parte de veteranos com doenças irreversíveis fruto da exposição). Usaram esses produtos durante décadas e ainda hoje se desconhece a dimensão do verdadeiro malefício ambiental e humano daí resultante.

Em 1980, o supremo tribunal americano permitiu que sementes fossem patenteadas, como um “micro-organismo vivo criado pelo homem”. A Monsanto achou o precedente apetecível e começou a concentrar a sua área de actuação no sector alimentar. Patenteou sementes que resistem a um potente herbicida, também produzido pela empresa. Ganhou o domínio do mercado americano dos transgénicos, com particular evidência no milho, soja e algodão. Rapidamente começou a perseguir agricultores que alegadamente infringem as suas patentes.

Quem compra as suas sementes está proibido de as reutilizar ou ceder a outros agricultores. O excedente deve ser destruído e todos os anos o agricultor é obrigado a comprar novas sementes. Usam um exército de investigadores privados que semeiam o medo no coração da América rural. Seguem e fotografam agricultores, filmam campos de cultivo, vasculham o lixo das quintas, infiltram-se em reuniões comunitárias. Mesmo assim, apesar de toda essa vigilância – que lhes valeu a alcunha de “polícias das sementeiras” ou “Gestapo das sementes” – o controlo integral é complicado. Por isso, muitas vezes, atiram o barro à parede.

Foi o que aconteceu com Gary Rinehart, um comerciante numa pequena região do Missouri, que foi visitado por um desses agentes, que o acusou de estar a usar sementes patenteadas e o ameaçou com um processo em tribunal que lhe ia custar “tudo o que ele tinha”. Gary nem sequer era agricultor, por isso sabia que a acusação era infundada. Quando foi intimado para comparecer em tribunal, contratou um advogado apareceu na sala de audiência de peito aberto. Soube que o investigador o tinha filmado na época de plantação e que na acusação estava descrita até a cor do saco de sementes que teria usado. O relatório ia ainda mais longe: Quando ficou vazio, o saco voou para a estrada – em terreno público – onde o investigador pode recolher alguns grãos de soja, cujas análises em laboratório comprovaram ser “tecnologia da Monsanto”.

Gary parecia estar tramado, não fosse o facto de não ser agricultor e nem sequer ter um terreno agrícola. Foi dado como provado em tribunal que o investigador se tinha “enganado no agricultor”. A Monsanto limitou-se a desistir da queixa, mas não admitiu publicamente o erro, nem sequer se ofereceu para pagar as despesas com o advogado que Gary, a muito custo, conseguiu suportar. Centenas de agricultores não têm essa sorte. Não podem pagar um advogado, nem suportar uma dispendiosa batalha judicial contra um gigante com recursos ilimitados. São vencidos pela intimidação antes sequer do primeiro assalto e pagam as multas que a Monsanto aplica, seja a acusação verdadeira ou não.
A própria presença de sementes patenteadas nos seus terrenos pode ter justificações naturais, como a polinização, podem ter sido transportadas pelo vento ou por pássaros. Mas as táticas de intimidação tendem a vergar a mera possibilidade desse argumento.

A fuga é difícil, as alternativas são cada vez menores. A corporação desdobra-se em esforços para controlar o mercado. Em 2005, compraram a Seminis (que na altura controlava 40 por cento do mercado americano das alfaces, tomate e outros vegetais) e a Emergent Genetics, a terceira maior empresa de algodão do país. As estimativas apontam que a Monsanto controla 90 por centro da produção americana de soja.


Documentar a realidade

A capacidade de patentear e privatizar as sementes é um precedente perigoso. Quem controla o mercado das sementes controla o fornecimento de comida de uma nação. Ou do mundo.

A realidade abre cenários alarmantes e têm sido várias as vozes no planeta a se fazer ouvir em alerta. Uma delas é portuguesa. Chama-se Sara Baga e está a realizar um documentário chamado «Seed Act» que aborda toda esta problemática. Viajou e filmou em Portugal, França, Grécia, Inglaterra, Itália e Bélgica. Visitou inúmeras comunidades agrícolas e travou conhecimento com vários guardiões de sementes, “pessoas que trabalham de várias formas, com as mãos na terra, a tentar salvar a biodiversidade de sementes de polinização aberta, uma herança ancestral comum criada por agricultores ao longo de milhares de anos”.

A paixão que nutre pelo tema é perceptível no seu discurso entusiasmado e compreensível pela profundidade da sua raiz. Cresceu nos anos 80 numa área periférica de Lisboa, Amadora, onde costumava passear de mão dada com a avó em campos baldios, cheios de ervas e flores. O seu sítio preferido era uma horta que uma senhora cultivava num campo junto à estação de comboios, onde existiam couves que pareciam gigantes ao lado dela. Sentia-se fascinada por esses momentos, que depois reproduzia nas suas pinturas com guaches e aguarelas.

A arte foi conquistando espaço na sua vida e anos depois estava na Faculdade Belas-artes de Lisboa a tirar o curso de Design de Comunicação. No quarto ano, aproveita um projecto escolar para partir à descoberta desse mundo marginalizado que a fascinava, as hortas sociais que se espalhavam agora por baldios do centro lisboeta, tal como antigamente na periferia onde tinha crescido. “Era algo totalmente marginal na altura, ao contrário, do que acontece hoje, em que as hortas urbanas ganham nova cara e são vistas pelas pessoas de forma muito diferente de há anos atrás”.
Sara foi conhecer agricultores, falar com eles, escrever sobre o que faziam, fotografar as suas hortas. A partir daí começou a olhar para os sistemas alimentares com outros olhos e a aprofundar o seu conhecimento na área. “Sobretudo pensar criticamente sobre a evolução desta sociedade, as cidades e o campo, a forma como nos alimentamos e como vemos aqueles que nos trazem o alimento”.

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Semear a primeira obra

Em 2010, depois de um inverno frio em Amesterdão como bolseira de uma residência artística num projecto de arte social sobre gentrificação em espaço urbano, apanha um avião para a Guiné-Bissau para fazer um documentário.“Fui ter com o meu amigo Fernando Sousa, investigador em segurança alimentar e biologia de solos que estava a fazer uma pesquisa sobre segurança alimentar na zona e o caso da monocultura de caju”.

Nessa viagem, Sara teve oportunidade de conhecer comunidades de etnias de agricultores em áreas muito remotas, mas todas elas dependentes da produção de caju para exportar para a Índia em troca de arroz. “É um país com uma grande fatia de população camponesa que vive de forma extremamente simples mas está a sofrer muito por não ter nem soberania alimentar nem recursos económicos que a colmatem”, refere Sara, acrescentando que a Guiné-Bissau “tinha já nessa altura mais de sete por cento da sua área coberta com monocultura de caju, uma extensão imensa para a escala de um país”.

Dessa experiência nasce o seu primeiro documentário, «Hortas Di Pobreza», que venceu o prémio de melhor longa-metragem lusófona no FESTin em 2011. Durante o processo de edição, sentiu uma epifania que estaria na origem do «Seed Act». “Tive um flash, uma visão sobre um filme que ainda não existia, que se apresentasse em actos, como numa peça teatral, e cada acto aparecia isolado no seu contexto específico. Cada acto era uma situação concreta e cada situação era uma ideia para acção”.

Esse desígnio é uma das origens do título, que faz um trocadilho com uma outra palavra, outra situação, que a inspirou por antagonismo: “Federal Seed Act foi a primeira lei sobre sementes que foi criada nos EUA, seguiram-se outras e elas abriram precedentes para que a indústria corporativa começasse a controlar o mercado de sementes, que antes era tão aberto (verdadeiramente, não no sentido neoliberal) quanto local, e fizeram com que os agricultores que seleccionavam e cuidavam as sementes fossem remetidos para um papel secundário”, refere, sublinhando um outro precedente mal-intencionado, o do registo obrigatório das sementes – em nome de individual ou de uma corporação – para que pudessem ser vendidas.

“As sementes evoluíram por diversidade junto dos agricultores do mundo por milénios. Diversidade significa possibilidade de vida e adaptação, enquanto a uniformidade que se quer tornar normativa está associada à perda de diversidade e morte, particularmente porque esse critério foi criado para controlo industrial do sistema alimentar”. Acrescenta ainda: “Nos últimos anos temos visto uma tentativa de associar o registo de sementes à patenteação de sementes. Ora, as patentes foram criadas para registar autoria sobre invenções, as sementes não são invenções, são seres vivos e estes tratados foram os primeiros a abrir a possibilidade de registar patentes sobre a vida”. Um momento de pausa, o olhar longínquo no horizonte e uma convicção bem presente: “A Monsanto e as outras quatro megacorporações – que tentam controlar industrialmente as sementes e são basicamente derivadas da indústria química e armamento do século XX – não têm lugar num futuro em que as sementes serão um bem comum da humanidade”.

 

Casualidade inspiradora

Antes de partir para a produção de “Seed Act”, passou por outra experiência inspiradora. Visitou com os pais uma exposição de pintura de um amigo numa livraria do Bairro Alto e, por mero acaso, descobre que está a decorrer uma apresentação na sala ao lado. Intitula-se “Colher para Semear”. Foi aí que conheceu José Miguel Fonseca – que apelida de “o caçador de sementes português” – fundador de uma associação homónima à palestra. “Basicamente são um banco de sementes tradicionais agrícolas, cujos guardiões de sementes replicam as variedades antigas de sementes que descobrem país fora, mantendo-as vivas”.

Sara adorou a experiência, o contacto com aquelas pessoas “incríveis, humildes e muito dedicadas a preservar esta frágil e importantíssima herança que são as sementes agrícolas tradicionais”. Ela própria tornou-se uma guardiã de sementes.

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De volta aos campos férteis

Quando meteu mãos à obra, percebeu que a ideia parecia megalómana para uma realizadora independente, sem produtora nem financiamento. Mas para além de uma força de vontade indomável, Sara não queria fazer o filme sozinha, mas em equipa. E a equipa foi aparecendo: “fui convidando algumas pessoas para fazerem parte do projecto. Um dos grandes desafios foi escolher quem e que estórias colocar no filme. A minha cabeça fervilhava de ideias e a cada dia me aparecia uma nova possibilidade. Escolher entre elas foi um processo longo de decisão, de construção de possibilidades complementares para criar um filme que é uma história cheia de histórias, cada uma a mostrar algo único, dentro do geral que é a multiplicidade de formas de fazer uma mesma coisa – salvar as sementes”.10928867_829234883814825_8323963324965732388_n

Durante a produção conheceu “pessoas incríveis”, algumas que a acompanharam na “caminhada incerta”, outras que por falta de recursos económicos para conseguir pagar os custos de viagens acabaram por ficar de fora. Mas diversas vezes, quando confrontada com a adversidade, houve situações mágicas que se conjugaram e fizeram acontecer.

Em 2014 pretendia filmar uma serie de situações mas não tinha orçamento para todas as viagens. De repente, surge a Caravana Internacional pela Liberdade das Sementes, que permite a deslocação a França – onde há uma associação de guardiões de sementes chamada kokopelli que há uma década luta em tribunal para poder continuar a vender as suas sementes – e à Grécia, onde os Peliti organizam o maior festival de dádivas de sementes do mundo, onde guardiões voluntários oferecem sementes e almoço a mais de seis mil pessoas, num povoado distante no norte do país, perto das montanhas de Rodopia.

“Acho que foi uma conspiração sincrónica do universo a dizer – ‘bora, tudo é possível, mesmo sem budget! E assim tem sido, porque em três anos e com um terço do orçamento previsto conseguimos continuar a construir este projecto, mesmo sem ninguém receber nenhuma remuneração pelo trabalho”, assegura Sara. Os seus honorários têm sido as sensações de gratificação que vai sentindo ao longo do projecto, por estar a criar algo que possa inspirar as pessoas e que faça a sociedade mover-se um bocadinho mais para a soberania alimentar e para a agroecologia.

 

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“Quando comecei este projecto tinha apenas a ideia de que queria fazer um filme que fosse uma dádiva, que fosse uma semente, livre, sem patentes e que se multiplicasse, tocando muitas e muitas pessoas ao longo do seu caminho”.

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Decorre presentemente uma campanha de crowdfunding (http://tinyurl.com/kazoef9) para financiar a pós-produção de «Seed Act», tendo já angariado cerca de 5 mil dólares. A campanha termina dentro de três dias. Seja qual for o total do valor angariado, “o projecto irá florescer”, garante a jovem realizadora. Há sementes assim…

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