A noite parece estar mais silenciosa do que o costume. Talvez por isso, os passos na calçada fazem um eco que acompanha o casal pelas vielas escuras do centro histórico. Ela dispensava essa companhia. Mete-lhe medo e para esse efeito já lhe bastara a conversa dele:
– Sabes, travaram-se aqui imensas batalhas no passado. Muita gente teve uma morte agonizante no chão que caminhas.
Ela debruça o olhar sobre o solo com algum receio e ele aproveita para complementar:
– E nunca abandonaram o local.
– Nunca abandonaram como? – replica ela.
– Os seus espíritos permanecem. Alguns estão apenas confusos. Outros, revoltados.
– Revoltados? Revoltados com quem?
– Com o destino que tiveram. Não o compreendem e por isso descarregam a sua incompreensão sobre quem encontram.
– Acreditas mesmo que isso é verdade?
– Só nesta rua, já ouvi falar de duas casas que estão abandonadas porque as pessoas já não aguentavam as coisas estranhas que lá aconteciam.
– Tudo o que é estranho deixa de o ser, quando se encontra a explicação.
Ele acena com um sorriso.
– É precisamente quando não existe uma explicação que acontecem os abandonos e as fugas.
– A tal surpresa que me falaste não é uma visita a uma dessas casas pois não?
– Dentro de poucos instantes já vais saber.
– Devo preocupar-me?
– Não tens nada a temer. Ou melhor, vais temer sim, mas de forma positiva e em segurança.
– Vou temer de forma positiva? Em segurança?! Mas o que raio queres dizer com isso?
– Já vais perceber.
Continuam a caminhar pelas ruelas sinuosas. A aragem é fria e ela sente-a no rosto. Tão fria que o verão parece uma recordação distante. “Estará mesmo tanto frio ou estou a deixar-me condicionar pela conversa dele?”, questiona-se. O silêncio parece enregelar ainda mais o ambiente. Resolve quebrá-lo.
– Acabámos de sair de uma rua que se chama “Rua Escura”, para agora entrar numa que se chama “Senhora da Boa Morte”. Estás a fazer de propósito?
– Não, é pura coincidência.
– Não me parece nada uma coincidência.
– Então parece-te o quê?
– Sei lá, uma partida tua…
– As coincidências também têm sentido de humor.
Ela resigna-se com a resposta e continua a caminhar. O seu receio caminha de mãos dadas com a curiosidade. Resolve deixá-los ir. Segue-os.
Dobram uma esquina e ele puxa-a pela mão, para lhe travar o movimento. Sorri-lhe.
– É aqui.
Ela ergue o olhar e depara-se com um velho edifício abandonado. Telhado a cair, vidros partidos, teias de aranha. “Tinha de ser”, pensa.
– Hoje é dia 18. Trazes-me para uma casa abandonada com o número 18. Outra coincidência brincalhona?
– Se assim for, porque haverás de as temer? Sorri-lhes de volta.
Ela ainda estava a tentar digerir a resposta quando o destrancar da pesada porta de madeira lhe arranca um sobressalto. Salta de lá um anfitrião barbudo, cuja boa disposição lhe tranquiliza a inquietação. Para ser agitada logo a seguir:
– Lembra-te: vais temer em plena segurança. Repete essa frase caso sintas que o medo se está a apoderar de ti.
Ela olha em redor. O espaço é escuro e húmido. Estão algumas pessoas sentadas no soalho. Sentam-se. Há um murmurinho indecifrável no ar, que é apagado subitamente por uma luz branca que surge ao fundo da sala, em forma de quadrado. A luz é ofuscante, intensa, quente. Todos olham para ela sem desviar o olhar. Parecem materializar-se algumas palavras na luz. Pouco a pouco, vão-se tornando perceptíveis: Shortcutz Xpress Viseu. Ela respira fundo. Por um lado, aliviada. Por outro, como se quisesse armazenar todo o ar possível, que tanta falta lhe ia fazer durante a maratona de oito curtas-metragens de terror.
“Estou em segurança”
“Estou em segurança”
“Estou em…”

(Fotografia: José Cruzio)

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