JOÃO SILVA: CONFISSÕES DE UM MEMBRO DO BANG-BANG CLUB
A África-do-Sul atravessou um período de violentos conflitos no pós-appartheid, entre 1990 e 1994. Duas fações (ANC e IFP) gladiavam-se diariamente e enchiam as ruas de sangue. Quatro fotojornalistas cobriram o conflito de perto. Destacavam-se de todos os outros, pois misturavam-se nas contendas e acompanhavam a violência lado a lado. Kevin Carter, Greg Marinovich, Ken Oosterbroek e João Silva. Foram apelidados de Bang Bang Club.
“Detesto esse nome”, diz João Silva. Encontrei-o numa masterclass sobre fotojornalismo e reportagem, na Casa da Cultura em Coimbra. À minha frente está um homem calejado pela guerra. Habituou-se a ela, mas as marcas emocionais que ela lhe deixou são bem visíveis nas pausas que faz no slide, nas fotos que lhe trazem recordações mais dramáticas. Respira fundo, o olhar regressa à sala, diz: “Ya, vamos continuar”.
João nasceu em Lisboa, foi para a Africa-do-Sul aos nove anos. Desistiu cedo da escola. “Era demasiado rebelde para estar lá”. Mais tarde, descobriu a fotografia, apaixonou-se por ela. Aos 23, começou a trabalhar como freelancer. Não demorou a atrair a atenção de agências como a Reuters ou a Associated Press, até chegar a um dos suprassumos do jornalismo, o The New York Times.
Durante essa caminhada foi apelidado, juntamente com os seus três companheiros, por uma revista sul-africana de “Bang-Bang Paparazzi”. Revoltaram-se. “O que fazíamos era sério. Eu para ter um dia bom na minha profissão, alguém do outro lado estava a ter o pior dia da sua vida”. O nome foi alterado. Passaram a ser conhecidos como “Bang-Bang Club”. A mudança apenas suavizou a sua aversão à designação. Adensar-se-ia novamente mais tarde, quando a sua editora o obrigou a alterar o título do livro que escreveu em parceria com Greg Marinovich para “The Bang-Bang Club: Snapshots from a Hidden War”, de forma a rentabilizar a fama que o grupo viria a alcançar ao longo dos anos.
ÁFRICA DO SUL
Foi ainda num conflito no seu país que João perdeu o primeiro colega do clube. No dia 18 de Abril de 1994, houve um tiroteio em Thokoza, uma pequena povoação a poucos quilómetros de Joanesburgo. Estavam lá todos. Durante a chuva de balas, alguém gritou “Ken is down!”. “Caguei nas bullets. Levantei-me e fui ajudá-lo. Depois tirei fotos. Foi a última coisa que fiz pelo meu amigo. Fotografei o seu corpo no chão”. Levanta os olhos para nós e pergunta: “Sabem o que o Ken costumava dizer?” Aguarda alguns segundos retóricos e responde: “Que uma morte não fotografada era uma morte esquecida”.
João está bem familiarizado com esse dualismo, que ondula entre o sentido de missão e o registo profissional de atrocidades. “Se ninguém vê, não se passou nada. Se ninguém vê o sofrimento alheio, é porque não há sofrimento”, afirma, convicto. Quando dispara o seu obturador, não glorifica a violência. Documenta-a. Denuncia-a. “Se puder consciencializar uma única pessoa em relação a estes infelizes acontecimentos, sou um homem feliz”.
Por diversas vezes sentiu-se dividido. Registar a realidade à sua volta ou tentar alterá-la? “Já ajudei a salvar vidas. Noutras vezes, não”, responde. Sente-se todo o peso do mundo na resposta. Talvez nessas vezes pudesse ter feito a diferença. Ou talvez tivesse cavado a sua própria sepultura. Clica no próximo slide. Contempla a imagem, demoradamente.
Na noite de 17 de Junho de 1992, vários homens armados (IFP) invadem a povoação de Boipatong. Executam 45 pessoas a sangue frio. No dia seguinte, João está lá. A determinado momento, vê um jovem negro vestido de branco, a fugir de uma multidão em fúria. Nunca o viram na povoação e acusam-no de ser um membro do IFP. João consegue furar a roda humana enraivecida que se debruça sobre o jovem. Dezenas de bocas soltam palavras de ódio. “Ele nem conseguia falar, de tanto medo que tinha”.
Ajoelhado e aterrorizado, nem dá conta do enorme pedregulho que deixam cair na sua cabeça. “E então começou a festa da morte”, afirma João, com os olhos mais uma vez ausentes. O grupo ataca o corpo à catanada. “Já estava morto, mas continuaram a massacrá-lo”. Lâminas, paus, pedras. E, por fim, o fogo.
Neste ponto, João já sentia alguma reprovação na expressão dos atacantes. Recordou a frase do amigo Greg, quando tirou a foto que lhe valeu o Pulitzer: “Ser tu parares de o matar, eu paro de fotografar”. Mas os membros do ANC não pararam. Continuaram a apedrejar e a esfaquear o jovem, que se chamava Tshabalaia e por mero acaso tinha passado na povoação de Soweto. Por fim, regaram o corpo com gasolina e atearam-lhe fogo. Greg continuou a disparar. Eram apenas os seus dedos a trabalhar, a mente estava paralisada.
Também era assim com João. Quando o corpo do jovem vestido de branco já não era mais passível de ser mutilado, a raiva começou a mudar de direção. João sentiu a mudança e fugiu. Levou com ele a pergunta cuja resposta nunca saberá. “O que teria acontecido se eu tivesse interferido?”.
IRAQUE
No período da pós-intervenção americana no Iraque (2006-2010), eclodiu uma guerra civil no país, com insurgentes xiitas a rebelarem-se contra as recentemente estabelecidas forças iraquianas e as forças da coligação ocidental. João esteve lá. E cobriu o conflito em ambos os lados da barricada. Relembra uma foto que tirou a um sniper xiita, oculto numa divisão de um prédio em ruínas. “Poucos minutos após a foto, aquele quarto deixou de existir”, revela. Denunciada a posição, o exército americano respondeu com um tiro de bazuca. “Foi com uma At-4. Felizmente, descemos a tempo”.
Já ‘embedded’ num pelotão de marines americanos, durante uma ronda na província de Anbar, foi obrigado pelo oficial responsável a permanecer no carro, para sua própria segurança. João não achou piada à ideia, mas o oficial foi irredutível. A meio do percurso, ouviram-se tiros. “Stay here!”, vociferou o militar – que também era o médico da unidade – antes de abandonar a viatura. Quando regressou, João expressou-lhe a sua frustração. “Estou aqui para trabalhar, se não me deixam, vou acompanhar outra unidade”, gritou. O oficial limitou-se a levantar a mão, de forma quase dramática, com um pedaço de metal na ponta dos dedos. “Esta vai ser a melhor foto que vais tirar hoje”. Era uma bala de calibre 7.62mm, que tinha atravessado o capacete blindado com kevlar de um soldado de 19 anos, ferindo-o gravemente. “A foto acabou por fazer capa no New York Times”, afirma João.
Nesse mesmo ano, no dia de Halloween, João da Silva esteve em Al-Karmah, povoação no centro do Iraque, cujo nome se traduz “karma”. Acompanhava uma patrulha de marines numa estrada enlameada, quando o zunido de um tiro o levou, instintivamente, ao chão. A bala alojou-se no torso de um dos soldados americanos, que tombou alguns metros a frente. Um sargento (Jesse E. Leach) agarrou o ferido e arrastou-o pela lama até um campo de canaviais, onde ele pode ser assistido em segurança. João capturou todos esses momentos. O soldado sobreviveu, o sargento foi condecorado e a fotografia de João foi finalista de um Pulitzer e vencedora do World Press Photo.
THE NEW YORK TIMES
Por vezes, o talento não basta. É preciso aliá-lo à sorte de poder trabalhar numa publicação que oferece aos seus profissionais todas as condições. É o caso do diário secular americano. “Dão-nos dois meses de trabalho de campo para cada reportagem de cinco mil palavras. Temos tempo e temos budget para fazer algo em condições”. A equipa é geralmente constituída por três elementos. “O correspondente, que é que descobre a história, eu para fazer a imagem e um guia local para organizar toda a logística”. O grande desafio, na sua opinião, “é descobrir se a história que tens na cabeça é real, se compensa o jornal enviar-te para ires em busca dela”. Depois, no terreno, é a vocação a assumir as rédeas. “Um profissional constrói uma narrativa do princípio ao fim. Essa é a grande diferença”.
No fotojornalismo – tal como noutras áreas – a abundância de matéria-prima é profícua. Mas desengane-se quem pensa que João lida bem com esse facto. “A coisa que mais odeio é escolher fotos. Agora com o digital então, é terrível”.
AFEGANISTÃO
“Adoro este país. Vejo-o quase como bíblico e, ao mesmo tempo, bélico”. As palavras de João são duplamente irónicas. A estadia no Afeganistão revelar-se-ia fatídica para o fotojornalista. Mas, no início, sentia-se espantado com a quantidade de artilharia antiga que decorava as aldeias, desde misseis a tanques, vestígios de 10 anos de ocupação soviética. Viveu lá situações que nunca esquecerá. Como o dia de Natal de 2011, que passou a ajudar um afegão a procurar os filhos debaixo dos escombros do que até aquele dia fora a sua casa. “Não sou talibã, não sei porque me fizeram isto”, lamentava. João estava habituado à amarga realidade dos danos colaterais. “São os inocentes que mais sofrem com as guerras”.
Noutra situação, viu-se debaixo de fogo de um helicóptero americano que estava a bombardear uma aldeia com bombas de fragmentação. Procurou abrigo com alguns afegãos numa velha casa térrea. “O telhado até ondulava com as explosões”. De repente, sentiu picadas fortes no corpo. Uma, duas, três, inúmeras. Eram vespas, cujo ninho tinha caído das telhas. “Caga nisto, vamos sair daqui!”, afirmou sem hesitar. Enfrentou as explosões na rua, mas a sorte protege-o nesse dia.
E também esteve ao seu lado no 23 de Outubro de 2010. Apesar de tudo o que aconteceu nesse dia.
João saiu do hotel às cinco da manhã. Entrou no jipe da patrulha americana e arrancou para os arredores de Kandahar, já próximo da fronteira com o Paquistão. Quando chegou ao local, João deixou os dois soldados seguirem à sua frente. Um deles levava um detetor de minas, pareceu-lhe uma opção mais prudente. A terra era árida e seca, por vezes estalava sob as botas. Mas num dos passos, João ouviu um som diferente. “Um click”. O estrondo foi acompanhado por uma “sensação de choque elétrico”. Já prostrado no chão, a única dor que João sentiu foi quando ergueu o braço com a máquina fotográfica e tentou captar o que lhe tinha acontecido. “Tinha um buraco no antebraço, via-se o osso”.
Perante o alvoroço agoniado com que os soldados manuseavam torniquetes, João pediu o telefone satélite. Ligou para a mulher. Eram sete da manhã em Joanesburgo. “Sou eu, perdi as minhas pernas, mas acho que vou viver”. Desligou e acendeu um cigarro. “Queria que ela ouvisse por mim e não por uma voz estranha”. Já esvaído de adrenalina, perdeu os sentidos no helicóptero.
Acordou num hospital alemão. Foi lá que soube que, apesar de tudo, tivera imensa sorte. Havia uma segunda mina, com uma carga explosiva muito superior, mesmo ao lado da que tinha pisado. “Se tivesse sido essa, não havia suficiente de mim para encher uma caixa de fósforos, disse-me um tipo da brigada anti-minas”.
A batalha da recuperação foi dura. “Não foram só as pernas, a minha uretra, o meu canal rectal, tudo explodiu. Tudo teve de ser reconstruído, perante infeções constantes. As bactérias eram o pior inimigo”.
Dois anos e 73 operações depois, João estava recuperado.
Desde então, duas próteses permitem-lhe andar, com o auxílio de uma bengala. E não só. João já fez a maratona de Nova Iorque de bicicleta, já se riu do filme The Bang Bang Club – “A narrativa está cheia de tretas” – e conduz a sua Harley-Davidson pelas ruas de Johannesburg, onde vive e trabalha como fotojornalista. Só não faz jornalismo de guerra. “Uma passagem pelo Inferno é suficiente”.
Créditos da imagem de capa: Martin Henrik
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