A SERBIAN CRONIC
“Todos vocês que estão aqui, já sabem ao que vêm”. À medida que as palavras de António Reis ecoaram pelo auditório do Rivoli, senti-os estremecer pela segunda vez. O primeiro abalo, esse ocorrera minutos antes.
Convidara um grupo de amigos para uma sessão do Fantasporto. Todos os anos, o festival apresenta um filme choque. Um filme que não deixa ninguém indiferente, que entra no âmago, revira emoções e desperta acesas conversas noite dentro. Ou seja, ideal para visionar em grupo. Nesta edição (2011), esse papel estava atribuído: “A Serbian Film”.
A todos tinha sugerido que evitassem qualquer tipo de pesquisa sobre o filme. Que tal poder-lhes-ia amputar severamente a experiência de visionamento. Afinal, nenhum choque é genuíno se contamos com ele, muito menos os efeitos sensoriais que daí advêm.
Atravessada a cortina de veludo da entrada da sala, felicitei os seis por terem acatado a sugestão. “Todos os outros convidados não estão aqui. Desistiram”. Doze pares de olhos cruzaram-se de imediato, fugazes como gazelas assustadas perante um súbito rugido emanado da selva. “Mas… tem muito terror? Não suporto filmes de terror”, disse um. “Mas, mas espera aí…” balbuciou outra. Por entre um sorriso rapinado a Jack Nicholson, soltei um matreiro “don’t worry”. Afinal, agora era tarde para hesitações. Estava transposta a fronteira. Estava ultrapassado o ponto de não retorno.
À medida que o co-director do festival continuava a apresentar o filme à audiência, o nervoso miudinho crescia à minha volta. E nada o parecia atenuar, nem quando António Reis afirmou: “o bom cinema não é só feito de filmes fáceis”. Convenhamos, era impossível atenuar. Na mente deles ainda pairava – acredito – a gorda lista de países onde o filme tinha sido banido, proferida momentos antes.
“Mas afinal para o que me trouxeste, Victor?”, pergunta Caldevilla. Na realidade, eu próprio não sabia responder a essa questão. Apenas conhecia a reputação do filme e não o seu conteúdo – excepto duas cenas isoladas, partilhadas casualmente por um amigo. Tinha sido essa reputação a levar-me ali. Estava convicto que ir ser o filme mais provocante do festival e que nenhum de nós lhe ia ficar indiferente. E tudo o que detona a indiferença deve ser vivenciado colectivamente, pois é desses estilhaços que surgem as conversas mais fascinantes.
A sala escurece e o filme sérvio começa a rodar. A apreensão é espessa, quase palpável.
O tema, finalmente, apresenta-se. Retrata o submundo da produção de filmes reais onde se mistura pornografia com sadismo e violência. Numa das cenas, vislumbro a silhueta ao meu lado esquerdo de uma mulher numa espécie de convulsão a tentar libertar-se de um colete-de-forças, que são os braços do acompanhante, que tenta a todo o custo acalmá-la e mantê-la sentada. Caldevilla está ao meu lado e deixa escapar um sorriso nervoso, algo comprometido. Foi ele que convidou o casal.
A cena assombra-se. A sombra apodera-se da sala, da minha cadeira, arrepia-me as costas. O espectador da frente contorce-se, Caldevilla mete a mão na cabeça e a rapariga do lado esquerdo já fugiu pelo corredor. Olho para trás e naquele movimento cadenciado da cortina da saída ainda a abanar, não consigo evitar um sorriso nostálgico.
tudo o que detona a indiferença deve ser vivenciado colectivamente, pois é desses estilhaços que surgem as conversas mais fascinantes
Como nas experiências de quase-morte, onde horas supostamente se reduzem a segundos, naquele instante vejo-me nos tempos de universidade, a preparar uma reportagem para o jornal universitário. Atarefado e desorganizado, imerso numa panóplia de material relativo ao tema do lado obscuro da internet, enquanto veículo de distribuição de um mercado de conteúdos audiovisuais macabros. Filmagens reais de violações, assassinatos, tortura, tudo o que a imaginação mais distorcida possa conceber. Vi vídeos, li relatórios de polícia, recolhi testemunhos de utilizadores, acedi a sites onde esse material é transaccionado. Os mais superficiais pois os mais densos são inacessíveis aos jornalistas, quanto mais a um estudante de jornalismo. Esse trabalho chocou-me, mexeu comigo. Mas nunca recuei. A minha fome de realidade era maior. Não era curiosidade que me movia. Era a fome de realidade.
Afinal de contas, esse mundo paralelo existe. É obscuro, sobrevive abaixo do radar da maioria das pessoas, mas existe. Como em qualquer mercado, havendo procura, existirá sempre oferta. E os fetiches e as parafilias são quase infinitas, tal como a capacidade de as satisfazer por um preço.
A cortina ainda ondula e dá tempo ao sorriso de se estender também a uma caricata conversa com um amigo, fotógrafo de estúdio, sobre o lado gráfico do fotojornalismo. Ele defendia a semântica estética da fotografia e contorcia-se na cadeira do bar à medida que eu lhe ia mostrando fotos do World Press Photo, num portátil que tinha pedido emprestado por uns minutos a um desconhecido da mesa do lado. O monge budista em chamas no protesto contra a perseguição do governo vietnamita, a execução do vietcong, as crianças queimadas pelo napalm, o massacre dos refugiados no Líbano, entre muitas outras imagens que fazem parte de um conjunto de fotos que se tornaram icónicas porque, dentro do seu contexto sociopolítico, são cruamente reais. Retratam a realidade tal como ela é, sem filtros, que é como o jornalismo deve operar nessas circunstâncias. Nos acidentes, admito a preocupação eufemística, porque entra em causa a exploração gratuita de um acontecimento fortuito. O chamado sensionalismo. Mas nos casos onde a realidade deve ser denunciada, qualquer eufemismo usado para acalentar a sensibilidade do espectador – que se recusa a presenciar/reconhecer esse lado negro da realidade – entra no campo da censura e apenas serve dois propósitos: Obstaculizar a verdadeira percepção dessa realidade e fomentar a sua continuidade.
Informar é dar a conhecer a realidade que se quer desconhecida. É apontar-lhe o dedo, denunciá-la. Se o espectador se sente incomodado com as imagens, basta imaginar o nível de incómodo dos que vivem a realidade fotografada/filmada, para constatar que esse exercício psicológico de autocensura é quase egoísta. Sei que é confortável não saber, não ver, não imaginar. Mas acho que a minha fome de realidade sempre foi mais teimosa e ultrapassou o meu conforto e o meu sentido de auto-preservação.
Em linguagens e moldes diferentes, o cinema também pode desempenhar esse papel denunciador, onde usa a hipérbole como forma de choque para alertar o espectador para determinada realidade. Se lhe der um ligeiro encosto eufemístico, o espectador permanece entretido, mas incólume. Se lhe der um encontrão, ele estremece e nunca esquecerá o tema e, em maior ou menor escala, é iniciado um processo de consciencialização.
É por isso que estou farto de levar pancada deste filme visceral neste auditório do Rivoli. Estou chocado, desconfortável e até com alguns hematomas sensoriais, mas satisfeito por ter decidido enfrentá-lo, pois reconheço-lhe um propósito: Um bramido de alerta para a existência da realidade retratada, usando um encontrão para que ninguém lhe fique indiferente.
Todos os fenómenos condenáveis do mundo sobrevivem na obscuridade. Vivem de forma reptícia no silêncio, alimentam-se da ignorância das massas em relação à sua existência.
Desde as produções pornográficas com violações reais controladas pelas máfias russas, ao tráfico humano na Tailândia para esclavagismo sexual, às “escravas brancas” dos Balcãs, à pedofilia que não tem limites ou fronteiras, há todo um conjunto de fenómenos cuja abordagem eufemística não só prejudica a percepção das suas reais dimensões, como até pode servir de adubo passivo, que fertiliza a sua continuidade.
As lambadas continuam a emergir do negrume da sala, mas não arredo pé. Permaneço no ringue, teimoso e ensanguentado, e digo, entredentes, “Ok Serbian…. give me you best shot”.
E neste momento ainda não faço ideia que horas mais tarde vou entrevistar o realizador e que este ia ficar entusiasmado por constatar que a minha visão sobre o desígnio do filme correspondia à sua, enquanto criador, que simultaneamente o concebeu como uma alegoria e uma denúncia. Não fazia ideia que o filme ia vencer o Prémio Especial do Júri do festival. E não fazia ideia que o casal que abandonou a projecção estava num primeiro encontro e que o meu amigo Caldevilla, amigo do rapaz, o tinha convencido a ver o filme por causa da minha sugestão.
“Podes ir às cegas”, ter-lhe-á dito.
© 2015 – 2019, Victor Melo. All rights reserved.
Começo por dizer que estou solidário com a rapariga que saiu a correr da sala ( penso que ainda deve correr quando se lembra deste momento único) .
Penso que terei sido uns dos 15 convidados para este festival, mas hoje sei que escapei com muita sorte lol!
Pois, também tenho a vaga recordação de ter sido um dos que escapou… 😀
Para além da enormíssima curiosidade aviso que já estou assustada…opa’ não me trames mais uma vez hehehe
Não é incomum curiosidade e susto andarem de mão dada… 😀
Fiquei muito curiosa!
Bom aperitivo 😉
E entretanto chegou a haver refeição? 🙂
Caso positivo, não te esqueças de partilhar a tua experiência. 😉
Não acredito que venha a ver o filme, mas é quase como se o tivesse visto pois ao ler este texto foi como se estivesse na sala do fantasporto. Boa crónica, envolvente como o outro texto que li (do puto e a viagem de scooter), estou a ver que isso é uma marca pessoal e isso é bom.
Muito obrigado, fico contente com a transmissão dessa sensação. Tanto, que até rimei e tudo… 😀
Isto é assustadoramente curioso! 😉
Assustadoramente curioso é muito bom! 🙂
Lembro-me desta noite como se fosse hoje, e de como a sala se encontrava diferente no fim…
Aconselho, nem que seja pelo facto de nos mostrar uma realidade pouco conhecida, pelo menos para mim era na altura.
Bela crônica sim senhor!
Um filme a repetir? Certamente não 🙂
Ladies and Gentleman: Joana Fernandes, uma das “vítimas” visadas no texto! 😀
Ainda hoje relembro a tua audácia na forma entusiasmada como abraçaste o desafio às cegas, só pela experiência em si. That’s the spirit! 🙂