L ynette Fromme estava sentada no passeio de Venice Beach, na Califórnia, quando viu a carrinha aproximar-se. Tinha acabado de abandonar a universidade e tinha os seus pertences consigo, despejados em sacos e malas. Estava deprimida e confusa, não fazia ideia do rumo que iria dar à vida. Quando o vidro desceu e uma voz rouca lhe ofereceu boleia, Lynette hesitou. O silêncio durou meio minuto, até a voz rouca misturar a frase “não posso decidir por ti” com um sorriso malandro e com o arranque cadenciado da carrinha. Quando a carrinha já estava ao fundo da estrada, Lynette agarrou nas suas coisas, levantou-se e correu. Correu cada metro daquela estrada deserta que mergulhava num entardecer alaranjado, impelida pela mesma brisa morna que abanava as folhas das palmeiras e por um ponto de interrogação tácito que a seduzia e lhe completava a tela idílica exposta na galeria do pensamento. Corria impulsionada por uma emoção súbita de espontaneidade, uma vontade de ser livre e provar o fruto das possibilidades por desvendar, cujo sabor se imagina sempre doce. Corria em direção à carrinha conduzida por um dos ‘serial killers’ mais mediáticos da história, longe de imaginar que não seria uma das suas vítimas, mas uma das suas cúmplices. Uma de muitas.


As mulheres de Manson

Ao todo foram cerca de vinte as mulheres que se juntaram a Charles Manson nos anos 60 e que constituíram a famigerada “Manson Family”. Faziam tudo por ele. Cuidavam da casa, satisfaziam todas as suas fantasias sexuais, matavam por ele. Sim, Manson foi imortalizado na história da criminalidade como serial killer, mas na prática, nunca espetou a faca nem premiu o gatilho. Foi sempre a “família” a fazer o trabalho sujo. Curiosamente, eram na sua maioria mulheres instruídas e inteligentes, provenientes de famílias de classe média-alta e matriculadas em universidades de renome.

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Alguns membros da família Manson no Spahn Ranch. Lynette Fromme em baixo, à direita.

Mary Brunner era bibliotecária em Berkley com curso universitário; Leslie Van Houten provinha de uma família tradicional americana, foi coroada ‘home coming princess’ na mesma escola onde integrava o quadro de honra; Linda Kasabian era descrita pelos professores como “boa aluna”, “inteligente” e “incurável romântica”; Catherine Share era uma universitária, filha adotiva de um psicólogo; Patricia krenwinkel tinha sido catequista e estudava numa universidade jesuíta; Susan Atkins fora uma menina de coro; Lynette Fromme escrevia poesia e peças de teatro no colégio, onde foi eleita ‘Personalidade do Ano’. Outrora vivera numa casa pintada de branco, com relvado, sebes cortadas e uma bandeira americana hasteada junto à porta. No fim da viagem, iria morar num velho rancho (Spahn Ranch), propriedade de um idoso, que deixava a família Manson viver lá de graça, a troco de favores sexuais. Foi num desses favores que Lynette ganhou a alcunha pela qual se tornaria conhecida: Squeaky, que numa tradução literal significa “guinchinhas”. Fora batizada pelo idoso, devido aos sons que fazia quando ele lhe acariciava o corpo.

Para todas elas, Manson personificava um génio, um vidente, um guru. Impressionava-as com a sua retórica e com a sua capacidade de argumentação e elas seguiam todas as suas orientações, cegamente, entusiasticamente. Manson divertia-se a testar ou até expandir os limites. “Vai-me buscar um coco fresco, não me interessa que tenhas de ir até à Jamaica buscá-lo”, instruiu a Susan. A jovem sorriu-lhe, levantou-se do tapete da sala e só se deteve na porta, quando ouviu Manson dizer: “Deixa estar”. Não tinha de se preocupar com dissidências do grupo, pois elas policiavam-se umas às outras. Se uma delas começava a denotar um comportamento irrequieto, a ter dúvidas ou receios, Patrícia metia-as em ordem. “Manda-as vir ter comigo que eu faço-as sentir melhor”, assegurava a Manson. E Squeaky era uma espécie de figura maternal do grupo, sempre disponível com os seus ouvidos compreensivos e um abraço confortante. “Havia uma relação muito próxima entre todas, havia muito amor lá. Antes de haver medo, morte e assassinato”, confessaria mais tarde Barbara Hoyt, que optou por abandonar o grupo quando o sentimento fraternal começou a azedar.

 

 

Música, paranóia e a inseminação da convicção  

Manson não atraia apenas jovens inseguras. A sua reputação de guru espalhava-se pela Califórnia e chegou a atrair a atenção de estrelas da música como Jim Morrison (Doors), Cass Elliot (The Mamas & The Papas) e Denis Wilson (Beach Boys). Este último, Manson conseguiu que lhe pagasse um tratamento à gonorreia e tempo de estúdio para gravar algumas músicas que também compunha.
Numa tarde de Dezembro de 68, Manson ouve um disco acabado de estrear, o “White Album” dos Beatles. Nessa mesma noite, reúne a família à volta de uma fogueira e partilha com eles a sua visão do futuro. Prevê uma guerra entre brancos e negros que vai devastar o país. Esse confronto apocalíptico, assegura, é um mal necessário, pois irá purificar o país e terraplanar as bases para o emergir de uma nova sociedade, governada pela família Manson. Os Beatles – que apelidava de “parte do buraco do infinito” – tinham previsto esse acontecimento, daí o nome do álbum e as várias músicas que lançaram em código, em particular “Helter Skelter”. Alguns desses códigos eram dirigidos à família, como aviso para serem tomadas medidas de “preservação dos merecedores perante o desastre eminente”. Todas as jovens raparigas saborearam as palavras de Manson, sem sombra ou travo de perplexidade e aplaudiram em êxtase quando ele afirmou que o caminho a seguir seria gravar um álbum cheio de mensagens subliminares como o dos Beatles, que ao serem desvendadas iriam contribuir para o despertar do tão necessário conflito. Para esse plano, Manson contava com a colaboração de Terry Melcher, produtor musical que tinha conhecido através de Denis Wilson. Chegaram a ter uma data marcada para debater os detalhes mas Melcher faltou e acabou por perder interesse.

 

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A célebre “gruta da família”, nos arredores de Spahn Ranch (Califórnia)

 

A paciência de Manson não lhe permitiu esperar muitos dias até resolver ir tirar satisfações à casa de Melcher. Quando lá chegou, no número 10050 de Cielo Drive, descobriu que Melcher já não vivia lá e a casa estava alugada à família Polanski. Regressou ao rancho e alterou o seu plano. O tempo para a subtileza esgotara-se. Iriam matar um conjunto de personalidades brancas e iriam fazê-lo de forma a incriminar os negros. A seu ver, seguir-se-ia um ciclo vicioso de violência racial que iria eclodir no fenómeno apocalíptico que previra.

 

O Sangue que tinha de ser derramado

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“Morte aos Porcos”, escrito com sangue das vítimas na parede da casa da família LaBianca

O plano estava traçado, mas Manson não forçou nenhuma das suas cúmplices a perpetrar os crimes. Apenas as influenciou, sublinhando a importância desse acontecimento e, consequentemente, da sua colaboração. “Não havia ordens, ninguém nos obrigou a nada. Fazíamos o que queríamos, acreditávamos, por isso fizemos”, confessaria Squeaky mais tarde. Todas elas participaram, direta ou indiretamente, nos nove assassinatos. Linda, Patricia, Susan, Leslie e dois raros cúmplices masculinos (Tex Watson e Greg Grogan) cometeram os assassinatos. Manson apenas instruía: “Destruam toda a gente que estiver dentro da casa da forma mais macabra possível”, referiu em relação ao célebre massacre em Cielo Drive que vitimou Sharon Tate (grávida de oito meses e meio) e mais três pessoas que estavam na casa, tal como um jovem de 18 anos que teve o azar de escolher aquela noite para visitar o seu amigo, caseiro da residência, e que estava de saída no preciso momento em que o grupo chegou aos portões. As instruções foram seguidas. Os crimes foram brutais, a mansão da estrada do céu amanheceu com um cenário macabro de violência extrema, corpos desfigurados, mensagens escritas em sangue nas paredes.

 

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O Título da música dos Beatles, escrita com o sangue da actriz Sharon Tate no frigorífico da vítima

 

Na noite seguinte, novas instruções, com uma novidade. Manson quis acompanhar, “para ensinar como se faz”. Conduziram até uma casa em Waverly Drive, que sabiam ser habitada por um abastado casal, proprietário de uma cadeia de supermercados. Manson mandou as cúmplices esperar no carro. Entrou na habitação, despertou o casal do sono com uma pistola apontada e amarrou-os com fio de candeeiro. Voltou para o carro e mandou entrar o grupo, com duas sugestões: Tapar a cabeça das vítimas com fronhas de almofada e diversificar o uso de armas brancas. Assim foi. Foram usadas baioneta, facas de cortar bifes, até garfos. As palavras “morte aos porcos”, “ergam-se” e claro, “Healter Skelter” foram escritas com sangue nas paredes.

 

 

 

 

 

 

 


A Captura da Razão

Nesse mesmo verão, Manson e algumas das suas cúmplices foram presos, não devido aos assassinatos, mas por suspeita de furto automóvel. A polícia só estabeleceu a ligação semanas depois, após Susan ter-se gabado a uma companheira de cela que tinha sido ela a esfaquear a atriz famosa cuja morte inundava todas as notícias e que, inclusivamente, “tinha provado o seu sangue”.

Vieram as aberturas de telejornal, a indignação, a detenção dos principais intervenientes, agora com acusações de homicídio, o julgamento. Squeaky escapara à prisão mas isso não lhe aliviava a dor que sentia, parecia agudizá-la ainda mais. Sentia que tinha perdido a única família onde se sentira verdadeiramente em casa e sentia-se culpada. Estava livre e a família estava presa. Não fizera o mesmo sacrifício. Durante o julgamento, Manson cravou um X na testa (que anos mais tarde transformaria numa suástica, juntando-se à irmandade ariana na prisão para obter a sua proteção).

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Leslie Van Houten, Pratricia krenwinkel e Susan Atkins a serem transportadas para o tribunal

Na sessão seguinte, Leslie, Susan e Patricia ocuparam o banco dos réus com um x nas suas testas. Noutra sessão, Manson rapou o cabelo. O trio feminino fez o mesmo. Uma sucessão de pequenas mensagens que transmitiam que mesmo depois de tudo ter desabado, continuavam ao lado dele. Cá fora, o apoio e o simbolismo de apoio também marcavam presença. Squeaky organizava vigílias à porta do tribunal e junto aos portões da cadeia onde Manson pernoitava. Juntamente com outros membros da “família”, gritavam em plenos pulmões pela inocência de Manson, envergavam t-shirts onde exigiam a sua libertação. Raparam o cabelo, pintaram cruzes na testa e sentavam-se no chão durante horas, de mãos dadas a cantar músicas compostas por Manson. “Vamos ficar aqui até o Charlie sair”, dizia Squeaky às câmaras de televisão. Quando questionadas pelos jornalistas pelo facto de defenderem um potencial criminoso, relativizavam os seus crimes. Concentravam-se no homem e não nos seus atos. Os atos tornavam-se secundários, não interessavam, eram irrelevantes. O homem era maior do que as suas ações. “Ele é inocente. Sei que ele não matou ninguém. Definitivamente devia estar cá fora. Preferia estar eu lá dentro”, afirmava Squeaky.

 

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Sandra Good, Ruth Ann Moorehouse e Lynette Fromme em protesto à porta do tribunal

 

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As mulheres de Manson durante o protesto nas ruas do tribunal, já com a letra “x” marcada na testa

 

E Manson, acorrentado e encostado num canto de uma cela ferrugenta, tinha assim parte de si libertada, que vergava paredes de cimento e barras de ferro e alcançava o exterior, sob a forma de um exemplo vivo do imenso poder do culto da personalidade.
O que originava esse apoio cego? Esse incondicionalismo musculado e bramido ao vento, mesmo quando, apesar de ainda não haver uma condenação, as evidências serem flagrantes e acumularem-se umas em cima das outras, como corpos numa vala comum.

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Leslie Van Houten, Susan Atkins e Pratricia krenwinkel a caminho da sala de audiências

 

 

A psicóloga Nicola Davies traçou um retrato psicológico de Manson e avançou com uma explicação. Na sua opinião, o facto de Manson ser extremamente “carismático e charmoso” terá oleado o seu mecanismo manipulador, cuja intensidade fazia sucumbir até pessoas dotadas de pensamento lógico e racional. “Os seus delírios de grandeza foram tão enigmáticos e credíveis que os seus seguidores o meteram num pedestal. Tornou-se um deus em quem acreditavam e a quem obedeciam, acreditando que ele apenas pedia o que era necessário”, assegurou a psicóloga.

 

 

 

 

 

 

 

 

Solidariedade em liberdade

Cá fora, Squeaky fazia de tudo para manter esse pedestal polido. Após a condenação de Manson, moveu-se para Sacramento para estar perto da prisão onde Manson fora transferido (Folsom State Prison), tentava manter a “família” unida, desencorajava as dissidências e fazia de tudo, até planear um envenenamento, para impedir membros arrependidos de testemunhar (Barbara Hoyt). Recebeu instruções para prestar favores sexuais a dois ex-condenados, recentemente libertados e membros da irmandade ariana, para garantir a proteção desse grupo a Manson dentro dos muros da cadeia. Até conseguiu contribuir para a realização de um sonho de Manson, ter o seu álbum musical editado. Contactou insistentemente um produtor (Phil Kaufman) que, ciente do mediatismo do homicida mais famoso do país, aceitou encontrar-se com ele na prisão, onde negociou a produção do disco. Intitulado “Lie – The Love and Terror Cult”, saiu em Março de 1970. A capa do álbum visava parodiar a capa da revista LIFE, que tinha sido dedicada a Manson três meses antes, com uma reportagem intitulada “The Love and Terror Cult”. Graficamente, as capas eram idênticas, com exceção das cores e da ausência deliberada da letra “F” no cabeçalho.

 

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As mulheres de Manson com o cabelo rapado em apoio a Manson

 

Solidariedade em clausura

Mas apesar de tudo isso, havia um vazio por preencher dentro de Squeaky. Não era apenas físico, era ideológico. Por mais que fizesse, sentia-se uma traidora. O núcleo duro estava preso e ela não. Encarava a sua liberdade como um sinal de deslealdade. Decide corrigir isso.

Na manhã de 5 de Setembro de 1975, enverga um vestido vermelho e dirige-se ao Parque do Capitólio, em Sacramento. Sob o vestido, na coxa esquerda, tem amarrado um coldre com uma pistola semiautomática. Lera no jornal que o presidente americano, Gerald Ford, ia fazer aquele trajeto numa visita ao Museu do Capitólio. Aconchega-se junto a uma árvore e aguarda. Quando avista a comitiva do presidente, mete a mão debaixo do vestido. Com paciência felina, aguarda até ao derradeiro instante, onde, num gesto brusco, retira a mão do tecido escarlate e aponta a arma ao presidente. Antecipou-se aos serviços secretos, teve oportunidade para disparar, mas não chega a pressionar o gatilho. “A arma não disparou, não disparou”, gritou bem alto, em jeito de justificação, enquanto era detida pelo corpo de segurança presidencial. Na verdade nunca poderia ter disparado pois a arma não tinha nenhuma bala carregada na câmara. Nunca fora sua intenção assassinar Gerald Ford. O que Squeaky pretendia era ser presa com um crime mediático, que pudesse chegar ao olhos e ouvidos de Manson, de forma ao patriarca da família saber que ela estava solidária com ele.

 

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Lynette Fromme, detida pela tentativa de assassinato do presidente Gerald Ford

 

Durante o julgamento, Squeaky recusa colaborar com o advogado nomeado para a defender. É condenada por crime federal. A pena: prisão perpétua, com possibilidade de liberdade condicional após 30 anos cumpridos, um direito que viria mais tarde a recusar durante vários anos. Em nenhuma das muitas entrevistas de que foi alvo Squeaky demonstra arrependimento. A imagem é antagónica. Olhos que brilham e lábios que sorriem quando pronunciam a palavra “Manson”. “ Tem mais coração e espírito do que alguém que alguma vez conheci. É verdadeiro. Nunca exprimiu desejo por poder ou por aceitação. Alcançou-o naturalmente por ser brilhante”, afirmou, entusiasmada, a um repórter.

Em 1987, ouve um murmurinho nos corredores da prisão sobre Manson ter cancro testicular. Squeaky fica inquieta, não consegue conter a ansiedade. Poucos dias depois consegue fugir da prisão, com o objetivo de visitar Manson na sua penitenciária. É recapturada após 48 horas e vê a sua pena aumentada. Não contesta, antes pelo contrário. Respira de alívio quando toma conhecimento que se tratava apenas de um rumor. Enverga os trinta e quatro anos que passa na prisão como uma medalha, reluzente como o seu sorriso quando afirma: “Ele deu-me experiência de vida. Partiu a minha concha que nos protege de todos os sentimentos e emoções”.
Após recusar liberdade condicional inúmeras vezes, Lynette “Squeaky” Fromme foi libertada a 14 de agosto de 2009. Resta saber se finalmente se conseguiu libertar.


Epilogo: 

Todo este relato sobrevive às suas próprias circunstâncias. Também ele é maior do que elas. Variam as proporções, os enquadramentos criminais ou as letras dos cânticos, mas mantem-se o poder perigosamente sedutor do culto da personalidade. Há mais Mansons e Squeakys no mundo.

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