Enfio o bilhete de comboio entre as páginas do livro de Murakami e perco-me na paisagem que escorre lá fora, como aguarelas frescas numa tela inclinada. Algures nessa tela de vidro perdura uma recordação longínqua. A de quatro jovens aguedenses que um dia se enfiaram num comboio rumo a Viana do castelo, impelidos por desejo de aventura e descoberta.

Tinham ouvido falar num velho mosteiro com paredes de granito, escondido no meio do mato, cujas ruínas estavam repletas de lendas sobre assombrações e actos macabros.
Histórias seculares de monges que violavam freiras e que, nove meses depois, enterravam o fruto do crime nas traseiras. Em certas noites sem vento – dizia-se – ainda era possível ouvir o choro dos bebés, como que um eco eterno que ainda colidia nos blocos de pedra, rancoroso por em tão terna idade ter sido silenciado para sempre.
Constava-se também que os espíritos dos monges e das freiras habitavam o local, fria presença conservada por dois dos mais perpétuos sentimentos: o remorso e a vingança.
E relatos de túneis secretos que ligavam o mosteiro ao convento – que anos mais tarde eu veria desmistificados por um arqueólogo companheiro de inúmeras reportagens, que me garantia tratar-se de um mito perpetuado um pouco por todo o país, fomentado pelo “eterno interesse pelo profano no imaginário popular”.
E claro, os famigerados rituais satânicos que lá eram celebrados, tendo todo esse misticismo como palco.

Os jovens passaram uma noite de tempestade perdidos no monte de Santa Luzia, com os relâmpagos como única lanterna e a impulsividade como único mapa. Tropeçaram em galhos nocturnos, sentiram o piar sombrio das corujas nas suas nucas, até atravessaram um campo de tiro do exército, de mansinho para não alertar o sentinela que se aquecia com uma fogueira na guarita. Amanheceu sem que conseguissem encontrar o mosteiro. A dificuldade adensou-lhe o misticismo e aguçou-lhes o apetite. Gerou-se uma espécie de pacto tácito. Voltariam a tentar, um dia.

A reminiscência deve ter durado algum tempo, o vidro estava embaciado. A última vez que fiz esta viagem de comboio foi há 15 anos – pensei. Metade de uma vida! Quantos sonhos de juventude são perpetuados pela idade adulta? Será um erro fazê-lo? Ou será um erro enterrá-los precocemente, arriscando ouvir o seu choro distante nas noites mais silenciosas?

Mais tarde, sentado num dos túmulos de mármore do mosteiro, acompanhando as suas inscrições em latim com os dedos e aquele ambiente deliciosamente sombrio com os outros quatro sentidos, a resposta sussurrou-me que eu não precisava dela, pois sempre a conhecera ao longo da vida. E sempre a conheceria. Concordei, despedi-me dela e fui explorar o resto das ruínas com um sorriso de criança entusiasmada nos lábios.

 

© 2018 – 2020, Victor Melo. All rights reserved.