A GUARDIÃ DE CAVALOS DE FERRO
Texto: Victor Melo
Fotos: Rui Pedro Oliveira
O telefone toca às 6:27. Ela levanta o auscultador e diz “32”. Acena com a cabeça, desliga e sai para a rua, onde um galo disputa o silêncio da madrugada de inverno com uma campainha cadenciada. Junta-se-lhes o som de uma corrente de metal a deslizar no alcatrão. Ainda é noite, a única claridade vem de um pequeno círculo vermelho que balanceia numa das suas mãos, expelido por uma velha lanterna. A corrente é esticada até atravessar toda a estrada e no meio é colocado um disco a sinalizar “trânsito proibido”. O pequeno círculo de luz é agora branco mas continua ténue, não ilumina, apenas sinaliza. Dois pontos brancos emergem à distância e rapidamente se propagam na sua direção. Atravessam com fúria à sua frente, agitando-lhe os cabelos grisalhos. Zita Dias não arreda pé, nem se assusta com o rugido. Há anos que ele lhe é familiar. Recolhe a corrente e reabre a passagem de nível. Este foi o primeiro comboio do dia. Faltam 21.
Ser guarda de uma passagem de nível é uma profissão com a qual todas as gerações anteriores ao novo milénio estavam habituadas a conviver. Em finais da década de 90 havia acima de 900 destas profissionais. Era uma presença muito assídua na vida dos condutores, embora estes desconhecessem o seu quotidiano, rico em curiosidades e peculiaridades. Hoje, já só são 99.
Numa Era onde a tendência é a informatização e automatização, quisemos fazer um registo documental de uma profissão que é rara no país e que um dia, inevitavelmente, deixará de existir. Zita Dias é um desses espécimes raros, que aceitou partilhar connosco o seu dia-a-dia.
A cavalariça
O relógio marcava 6:15 da madrugada quando abriu a porta do seu abrigo, no quilómetro 32 da Linha do Vouga (conhecida como “Vouguinha”), a única linha de via estreita ainda em funcionamento no país. Liga o rádio, veste a bata azul e amarela e pouco depois atenderá o telefone, onde se identificará com o número da sua passagem de nível. O telefone toca sempre 15 minutos antes da passagem de cada comboio. Por dia passam 22, 11 em cada sentido, entre Aveiro e Sernada de Vouga. O telefonema é proveniente dessa última estação, que controla o tráfego do Vouguinha.
De seguida, Zita dirige-se a uma pequena banca de madeira, junto à janela do abrigo, onde tem um livrinho para registar a hora da comunicação, o número do comboio e a sua proveniência. Assina, faz um compasso de espera de alguns minutos e fecha a passagem. Ergue a lanterna com a luz branca. É sinal que está tudo em ordem e o comboio tem via livre. Usou a lanterna porque é de noite. Dentro de momentos amanhecerá e Zita passará a usar uma bandeira. “A não ser que esteja nevoeiro”, sublinha. “Se não tivermos visibilidade a menos de 100 metros, continuamos a usar a lanterna”.
São 07:22 quando o céu se tinge de azul claro. Na passagem do próximo comboio, lá está a Zita a erguer a bandeira vermelha, cuidadosamente enrolada. É sinal que está tudo bem e o maquinista pode continuar. Se estiver aberta, sinaliza perigo e o comboio deve parar.
Antigamente, para além da lanterna e da bandeira, as guardas tinham de andar sempre munidas de uma corneta e de uma lata com petardos. Agora, este material permanece no abrigo até ser necessário. A corneta serve para despertar um condutor mais distraído ou afastar um animal da linha. Já os petardos são o derradeiro recurso para fazer parar um comboio, caso exista algum obstáculo na linha. Devem ser colocados nos carris, a 500 metros do obstáculo. A explosão alertará o maquinista, que puxará de imediato os freios do “cavalo de ferro”.
A lata está empoeirada e presa por uma corda. Lá dentro, estão seis petardos cilíndricos de aspeto ligeiramente enferrujado. Durante todos estes anos nunca foram precisos.
“E anos disto é o que não me falta”, deixa escapar Zita, sorridente. Tem 57, 39 deles a tomar conta desse obstinado cavalo de ferro que lhe ocupa o dia a correr de um lado para o outro.
Memórias da primeira cavalariça
Sábado, 7 de Junho de 1975, foi o seu primeiro dia. A linha tinha acabado de reabrir nesse mês, após três anos inativa, devido à substituição das locomotivas a vapor pelas automotoras a diesel. Zita tinha 18 anos e começou por fazer apenas as folgas da colega, aos fins-de-semana. Era o trabalho ideal para ela naquela altura. Tinha um filho de dois anos, não existiam infantários e a mãe trabalhava no campo todo o dia. Ao fim-de-semana era quando tinha tempo livre para trabalhar.
O seu posto era no “25”, na zona de Eirol. Resumia-se num poste com uma caixa de chapa pregada, com um telefone e uma lanterna lá dentro, que ela trancava com um embude quando acabava o turno. Não havia abrigo, nem sequer uma cadeira. Mas o desconforto era o menor dos seus problemas. “Era uma zona muito medonha, cheia de arvoredo, escura e isolada, metia medo”. Muitas vezes o marido fazia-lhe companhia. Quando não podia, ela sentia-se insegura. “Uma vez andavam lá uns homens a tirar areia do rio. Começaram a mandar bocas mal-educadas e um deles chegou mesmo a fazer porcarias virado para mim”. Zita não teve meias medidas. Mandou parar um carro e perguntou ao condutor, de forma bem audível: “Não tem aí um cacete? Aqueles ali andam-se a portal mal”. Terá sido remédio santo. “Nunca mais me importunaram”. Pouco a pouco, a jovem e franzina menina foi-se habituando às condicionantes da zona, foi alargando o seu horário e superando todos os receios. Esteve lá 20 anos.
Em 1995, passou para uma passagem de nível um quilómetro acima. O “26”, na zona de Eixo. Esse posto já era abrigado, já tinha luz e água. E era um bocadinho mais perto de casa. “Metia-me lá em três minutos de motoreta”. Aqui, o inconveniente era outro. “A passagem de nível ficava numa grande reta, passavam lá imensos carros e em grande velocidade. Por vezes queríamos fechar e não conseguíamos, as pessoas pura e simplesmente não paravam”.
Ao longo dos 15 anos que lá esteve, foram constantes os sustos. Incluindo aquele que a obrigou a fugir para a linha, quando um carro desgovernado se espetou contra a cancela. “Vinham de Águeda e vinham xispados. Até larguei um chinelo a fugir”. Felizmente, ao longo das quase quatro décadas de profissão, Zita nunca presenciou um incidente grave no seu turno. Já uma colega sua do “26” não teve a mesma sorte. “Espetaram-se lá dois de mota e morreram. Foi um bocado traumático para ela, que era tão certinha. Teve azar”.
Esta passagem foi automatizada em 2010 e Zita Dias veio parar ao “32”.
Vicissitudes do ofício
Passam poucos minutos das oito da manhã quando Zita se senta, finalmente, para tomar o pequeno-almoço. Trouxe de casa um termo com leite e café, que acompanha com alguns “pãezinhos bem cozidos”, que comprou numa padaria madrugadora a caminho do trabalho. Trouxe também o almoço, como é hábito sempre que faz o turno da manhã, das 6:15 às 14:15.
É o seu turno preferido. “Passa mais rápido, parece que tenho mais tempo livre e aproveito melhor o dia”. O outro é das 12:30 às 20:30, agora torce-lhe o nariz, mas nem sempre foi assim. “Antigamente gostava bem mais de dormir durante a manhãzinha”, refere, com o dedo erguido e um sorriso prolongado.
Levanta-se e vai à “cozinha”, um exíguo espaço no canto do abrigo, composto por um lavatório de pedra, um pequeno frigorífico e um micro-ondas. Uma divisória de cimento e uma cortina de plástico separam esse espaço de uma sanita. Um luxo comparado com o passado. Durante muitos anos não existiu uma casa de banho no “25”. “Tentava-se a ir a casa de alguém conhecido que vivesse la perto”. Conta que depois acabaram por montar lá uma pequena divisão, embora sem água. “No inverno íamos às poças com um balde para arranjar água para despejar na sanita”.
Foram anos duros, que Zita foi superando através da capacidade de adaptação e um sólido sentido de dever. Algo que nem sempre é reconhecido pelos utentes, cuja impaciência muitas vezes lhes tolda a realidade mais crua e óbvia: o facto de aquela pessoa estar a zelar pela sua segurança. Por vezes, um pequeno atraso de um ou dois minutos na automotora é o suficiente para a ira ser descarregada na guarda da passagem de nível. “Mas felizmente também há muita gente compreensiva e cívica”, clarifica Zita. Parece ser o caso nesta manhã. São oito os carros atrás da cancela e já estão parados há mais tempo do que seria o normal. “Este vem sempre queimado”, afirma Zita, referindo-se ao 5180 proveniente de Águeda e recorrendo à gíria habitual que significa “atrasado”. Vislumbram-se alguns olhares impacientes atrás dos volantes, mas ninguém verbaliza a impaciência.
Já a velocidade excessiva, aqui não é um problema. É uma zona calma e precedida de lombas. O único susto de relevo remonta a uma tarde de inverno, quando um idoso não terá visto a corrente e embateu contra ela, passando por baixo e projetando o disco contra a parede do abrigo. Felizmente aconteceu poucos momentos após Zita fechar a passagem, ainda a alguns minutos da passagem do comboio. “Parou lá à frente, saiu devagarinho, inspecionou o carro, viu que estava tudo em ordem, entrou e foi à vida dele. Nem se lembrou de perguntar se estava tudo bem ou era preciso alguma coisa”, recorda.
No trilho da linha
A manhã vai a meio, quando desponta uma silhueta ao fundo da linha. É um jovem, que vem a tocar guitarra enquanto percorre o caminho-de-ferro. O momento é caricato, mas perigoso. E esse perigo tornou-se uma rotina diária aqui no “32”.
Durante o turno da manhã são incontáveis as vezes que Zita Dias intercepta pessoas a circular a pé na linha. Sempre paciente, aborda-as uma a uma, aponta para as placas sinalizadoras de proibição e tenta consciencializá-las para o perigo desse acto. Mas se a paciência de Zita é inesgotável, também o parece ser a teimosia dos peões. “Fazem ouvidos moucos, é um corrupio de manhã à noite”.
Explica que eles encaram aquele troço de linha como um atalho para encurtarem caminho para a escola, para o infantário e para o mercado. A zona já esteve vedada, “mas eles derrubaram o muro”. Ele foi arranjado e reforçado com uma rede. A rede foi “esburacada”. Ainda é vívida a recordação do dia que testemunhou uma senhora a passar, meticulosamente, os seus sacos de couves pelo buraco, antes de, a esforço, passar ela própria por lá. Zita abordou-a. E foi presenteada com uma resposta cheia de naturalidade: “Quem mandou fecharem? Dá tanto jeito”.
A Irmandade das Guardiãs
Mais uma campainha do telefone, mais um “32”. Toda uma vida de serviço equipou Zita com pequenos hábitos que já se tornaram intrínsecos. Calcula o tempo entre o telefonema e o fecho da passagem com afinada exatidão, reconhece pelos números os comboios que tendem a vir horas ou os que “raramente vêm à tabela”, sabe antever se as carruagens virão cheias ou vazias consoante o horário. São anos a observar aquele animal metálico, aprendeu-lhe os costumes e os temperamentos.
Cá fora, enquanto conversa connosco, mesmo fora dos horários de passagem, é frequente o olhar escapar para as duas linhas que rasgam longitudinalmente a terra. É uma profissão rigidamente regulamentada, com várias contingências de actuação que se mecanizam com a passagem do tempo. Todos os focos de distração são controlados. Para Zita poder falar connosco, a Refer disponibilizou um colega adicional para estar presente durante o turno, que garante “a redundância de serviço”. Uma contingência de segurança da empresa. Zita desempenha as suas funções normalmente, mas tem um colega presente a certificar-se que nenhuma distração causada pela equipa de reportagem se revela fatal.
No entanto, por entre essa rigidez horária sobram imensos tempos mortos. Zita aprendeu a aproveitá-los. Põe a leitura em dia – com preferência por jornais diários e revistas – ou ouve música portuguesa no seu fiel rádio que lhe inunda a solidão matinal com voz humana. Por vezes, simplesmente olha pela janela e pensa no futuro.
Nas horas de sobreposição de turnos, tem as colegas para conversar. Foi no decurso de uma conversa que aprendeu a bordar. “Fiz aqui os cortinados para a minha casa”, afirma, complementando de seguida, com um sorriso nos olhos: “ensinamos muitas coisas umas às outras”.
Zita está neste momento sentada num velho sofá de napa verde a bordar uma toalha para o próximo Natal. O sofá pertencia a uma antiga colega, que o usava para passar aqui a noite. Na linha estreita não há horários noturnos, mas algumas guardas são de longe e só vão a casa nas folgas. A sua colega era de Oliveira de Frades (48 km de distância). Quando a linha local fechou, deram-lhe trabalho aqui no “32”. “Quem precisa, não recusa”.
Zita sempre trabalhou na sua área de residência, mas ao longo das décadas foi tendo colegas de longe. No “25”, teve uma colega de Pinheiro de Lafões (43 km), a quem deu guarida na casa da mãe: “Ela lá lhe arranjou um quartinho para dormir, ainda durante uns aninhos”.
O abrigo é frio, especialmente no inverno. “Não imagino que sejam noites agradáveis”, refere Zita. Foram tantas as vezes que chegou ao amanhecer ao abrigo e ouviu as confidências da colega, sobre o medo que se apoderava dela quando a cortina noctívaga descia e a solidão se aliava à escuridão. A imprevisibilidade do elemento humano ainda piorava o cenário. Alguém terá descoberto que ela ali passava a noite e divertia-se a arremessar pedras e a bater à porta durante a madrugada. As grades de ferro que hoje existem no exterior das janelas e a rede de arame no interior foram uma exigência dessa colega à Refer, na altura desses acontecimentos.
Hoje, a Refer fornece frigorífico, micro-ondas, aquecedor, uma cadeira e uma mesa. Na altura, eram elas que “mobilavam” o abrigo para o tornar mais confortável. “Cada um levava o que podia. E quem queria dormir cá é que tinha de arranjar meio”. E com um pouco de entreajuda e criatividade, lá conseguiam transformar o posto de trabalho num aposento. Há um arame que ainda cruza o abrigo, que servia para manter uma cortina que dava privacidade a quem ali pernoitava. São vários os objectos que ainda perduram das estadias antigas das guardas de outrora. “São heranças”, diz Zita.
As folhas da nespereira abanam com a correria desfreada do último cavalo de ferro do dia. O último sob a guarida de Zita. São 13:20, já falta menos de uma hora para passar o turno. A ramagem da nespereira prolonga-se na horizontal, criando uma cerca natural ao abrigo. No final da primavera dá fruto. Zita contempla-a por uns instantes e relembra uma tradição antiga, que se enraizou no “25” e no “26”. As guardas criavam uma horta junto ao abrigo, onde plantavam couves, batatas, cebola e feijão. Um importante sustento ao longo do ano. Hoje perdeu-se o hábito. “Agora roubam tudo, passam e levam tudo. Eram outros tempos, outro respeito”, desabafa Zita.
Durante todo este tempo enraizou-se também uma convenção, que não foi semeada e cuja origem ninguém consegue explicar. O facto de a profissão ser exercida praticamente em regime de exclusivamente por mulheres. Os próprios documentos orientativos são explícitos nas suas designações. Lá dentro, pode ler-se “deveres das guardas”, num documento afixado. “Não sei porquê, foi sempre assim”, afirma. Só num passado muito recente é que começaram a surgir exceções. Inclusivamente, o guarda que vai substituir Zita no turno da tarde é homem. “Deve ser um sinal dos tempos” solta, entre uma gargalhada.
O relinchar do futuro
Alguém dá dois toques na porta e pergunta o horário do próximo comboio. Zita sacia a questão, sorri e partilha connosco: “Há tanta gente ainda dependente deste comboio”. Dá como exemplo “as muitas pessoas que não possuem outros meios de se deslocarem dentro das localidades”, ou “os estudantes que utilizam diariamente a linha”, por causa do polo universitário em Águeda. “Ao fim do dia as carruagens vêm sempre carregadas deles”. Zita sente particularmente essa importância na pele quando há greves. “Muitas vezes vêm cá bater-me à porta, a perguntar se há comboio. Querem ir para aqui e acolá e depois perguntam-me como é que vão fazer”, afirma, abrindo os braços.
Mas a linha deve sobreviver à sua função e Zita está ciente disso. “Compreendo o avanço do progresso, mas tenho pena da extinção destas profissões que foram o ganha-pão de muita gente”. Na sua voz é percetível alguma incerteza em relação ao futuro.
A REFER é pragmática na resposta: “Tal como noutros processos de cessação de posto de trabalho a REFER, através de instrumentos de mobilidade interna e reconversão, tem promovido a integração das colaboradoras noutras funções de acordo com as necessidades da empresa”.
Zita permanece pensativa durante poucos segundos e assegura: “Se fosse hoje a iniciar esta profissão, não sei se a queria. Na altura foi o que apareceu, adaptei-me a aprendi a gostar dela. Não me vejo a fazer outra coisa”.
O carinho que nutre pelo ofício é notório, mesmo quando Zita é confrontada com ele fora do horário de serviço. Quando pára de carro numa passagem de nível com guarda, não a incomodam eventuais atrasos. “Gosto de ficar a ver, apreciar os movimentos dela, acho engraçado”.
E sente que está longe de ser incomum a afeição que as pessoas sentem por esse meio de transporte. Tem dois netos que adoram visitá-la, para ver os comboios. O mais novo tem dois anos e meio, uma idade demasiado curiosa para o poder ter lá. “Quer mexer em tudo, nos botões, vai para o telefone, não dá”, afirma, a sorrir. O mais velho tem cinco e faz questão de a ajudar nas tarefas. “Gosta de ser ele a fechar a corrente”. E depois há aquelas pessoas que aparecem por lá mais do que uma vez por dia, apenas para ver o comboio passar.
Zita Dias acha piada ao facto de muitos troços desactivados serem convertidos em ciclovias. “Sei que há uma em Sever do Vouga. Quero lá ir um dia, com o meu neto mais velho, e andar de bicicleta onde um dia já passou o comboio. Acho que vai ser uma sensação de alegria e tristeza ao mesmo tempo”.
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