A SERBIAN INTERVIEW
A Serbian Film foi o filme choque da edição 2011 do Fantasporto e vencedor do Prémio Especial do Júri. Banido em vários países, premiado noutros, não deixou ninguém indiferente. O The New York Times considerou-o “Horrivelmente inventivo e desafiante no seu significado oculto”, o Bloody Disgusting deixou uma sugestão: “Tu não queres ver este filme. Apenas pensas que queres”. E uma organização católica moveu um processo judicial ao director do Festival de Sitges, que resolveu exibi-lo apesar de estar oficialmente banido em Espanha. Desígnios e motivações partilhados na primeira pessoa por Srdjan Spasojevic, autor daquele que já se tornou num dos filmes mais polémicos de sempre.
Qual foi a sua principal inspiração para realizar “A Serbian Film”?
Senti o ímpeto e a necessidade de dizer algo sobre os problemas que enfrentamos quotidianamente na nossa região, na nossa problemática e turbulenta região. E mesmo no mundo em geral. Como disse na estreia do nosso filme no Fantasporto, o mundo de hoje está revestido numa doce camada politicamente correcta mas por dentro está muito podre, em muitos níveis.
No fundo, tratou-se de uma espécie de combinação interior de um estilo fílmico que gostaria de ver ou fazer, com todas essas emoções e tensões para dizer algo sobre o que nos rodeia. Daí, resultou “A Serbian Film”.
Considera que manter o obscuro fenómeno retratado no filme escondido e fora de vista é alimentar a sua continuidade?
Absolutamente! Absolutamente! Infelizmente, as pessoas são incapazes ou não corajosas o suficiente para encarar estas problemáticas. Defini-las, diagnosticá-las e, mais tarde, combatê-las. Se nos habituamos a ignorar todas essas coisas que nos rodeiam, estamos, como referiu, a alimentar a sua continuidade. Estamos a tornar o terreno fértil para esses predadores. É um problema sério não encarar estes problemas.
E a crueza das imagens, o choque da plateia, são formas de despertar a audiência para esses problemas?
Sim, algo do género. A minha intenção foi colocar a audiência no meio desses problemas. Não queria que este filme estivesse ao nível de, digamos, notícias da televisão ou jornais. Onde vês algo mau, viras a página e a vida continua. Não. Tínhamos de mostrar essas cenas de uma forma tão desprendida, tão desalgemada, que não permitisse que alguém as ignorasse.
Digo sempre que este filme é uma metáfora do nosso país, falo sempre sobre metáforas, mas infelizmente talvez aquelas coisas existam mesmo. Podem perfeitamente existir. Podem ser reais. O filme é uma reflexão da realidade. Não dizemos nada de novo. Todas aquelas coisas acontecem à nossa volta. Apenas as mostramos, as denunciamos ao mundo.
Como se lembrou de criar as cenas mais pesadas, mais negras? Pesquisa, entrevistas no meio ou apenas imaginação e processo criativo?
Essas cenas são desenhos literais dos nossos sentimentos. Só quisemos pintar de acordo com o que sentimos. É a resposta mais exacta que posso dar. São pinturas dos nossos pensamentos e emoções.
Quão dura foi a produção e todo o processo de filmagens?
Primeiro, tivemos muita sorte com os actores, que adoraram o argumento e acreditaram verdadeiramente em toda a ideia de “A Serbian Film”. Eles queriam dizer o mesmo que nós.
Reunimos uma equipa muito jovem, que incluía pessoas com ambição, pessoas com imenso conhecimento. [pausa prolongada, olhar introspectivo] Fazer um filme é uma coisa séria. Tem de ser meticulosamente planeado. Após alguns meses de preparação e pré-produção, o processo de filmagem foi, penso, igual a qualquer outro. No set, muitas vezes ninguém diria ou constataria muita da força, digamos, dessas cenas que mais tarde estaria bem presente no filme. Foi um processo muito técnico. Tivemos imensas dificuldades. No fundo, um processo normal, com dias bons e maus.
Qual é o impacto da Europa de Leste neste tipo de fenómeno?
Uma das coisas que quisemos fazer foi transferir a Europa de leste para este filme. De uma certa forma, o personagem Vukmir, é uma representação exagerada de um executivo do financiamento de cinema europeu. É um pornógrafo, um explorador.
Na Europa de leste, e se calhar em toda a Europa, não consegues financiar o teu filme a não ser que sejas ajudado pelo governo ou outro fundo europeu. E eles têm sempre as suas regras, as suas ideias. O aspecto que um filme deve ter, a mensagem que deve passar, as fronteiras que o devem limitar. Enfim, eles têm sempre formatos e padrões sobre como um filme deve ser feito. Sobre qual deve ser a forma de contar determinada historia. É uma burocracia. Tens uma esquema formatado e deves segui-lo. A forma como este filme foi feito representa a nossa luta contra o politicamente correcto, que penso estar a sufocar toda a arte livre e a criatividade que ainda resta nos dias de hoje.
Se nos habituamos a ignorar todas essas coisas que nos rodeiam, estamos a alimentar a sua continuidade. Estamos a tornar o terreno fértil para esses predadores.
Há vários relatos de episódios caricatos durante a produção. Pode partilhar alguns?
Agora, alguns desses factos podem parecer engraçados [risos], mas na altura não foram. Tivemos diversos problemas na pós-produção. Filmamos em Red Camera (digital) e mais tarde tivemos que transferir para 35 mm. Fazíamos questão que tudo tivesse um aspecto muito profissional, por isso negociámos com um laboratório em Munique para a transferência do filme. Depois de o serviço estar concluído, eles apareceram com um monte de advogados e directores e disseram-nos que não iam entregar o material. Que não iam colocar o carimbo deles num filme destes. Até fizeram uma espécie de charada, onde contactaram a polícia para falar por eles, com várias acusações ridículas.
No meio da Europa livre, fomos atirados para a rua sem o nosso filme. Eles queimaram o filme, destruíram-no. Aprendemos algo com isso. Fomos a um laboratório estatal de Budapeste e, para evitar passar pelo mesmo, mostramos-lhes o filme primeiro. Perguntámos – Estão dispostos a fazer este trabalho? Responderam que sim. No final, depois de tudo concluído, disseram-nos: “Não, não vos podemos entregar o material”.
Foi um processo muito louco, muito frustrante. Mas deu-me força. E foi como se me desse uma certeza que estava a retratar coisas verdadeiras no meu filme. Foi como se tudo o que aconteceu ao personagem principal e à sua família, estivesse a acontecer ao próprio filme.
Depois disso, fizemos um plano. Dividimos o processo de transferência em cinco diferentes laboratórios europeus. Se alguém levantasse problemas, só destruiria e atrasaria uma parte do processo. E assim, oito ou nove meses depois, para o bem ou para o mal, “A Serbian Film” veio ao mundo.
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