É impossível saber as horas. Não trouxe relógio, o telemóvel ficou sem bateria e o céu está coberto por uma espessa manta nublada.
Há já algum tempo que ando a subir esta serra, que apelidaram de Freita. Algures na mochila está um caderno com uma lista de pontos de interesse.
A Cascata da Frecha da Mizarela, a maior cascata da Península Ibérica; o fenómeno geológico que apelidaram de Pedras Parideiras; a Portela da Anta, um monumento tumular megalítico com quatro ou cinco mil anos. Vou ignorá-los a todos.
Os objetivos para o resto deste dia e o início do próximo estão bem definidos. Hoje, quero pernoitar num ponto alto da montanha e usufruir daquela inspiração que nos parece abraçar de forma particularmente meiga quando estamos mais próximos das estrelas. Ao amanhecer, quero visitar as ruínas de uma velha lenda que me gela e ferve a curiosidade ao mesmo tempo.

Para além das horas, também desconheço o caminho. Não sigo um trilho específico. Subo a montanha de forma intuitiva, como quem deseja o mar e ruma a oeste porque sabe que vai acabar por o encontrar. Eu sei que esta caminhada vertical me vai levar ao meu destino, pois já ultrapassei as nuvens.
Não é que esta montanha seja particularmente alta, tem 1085 metros de altitude, há 25 montanhas mais altas em Portugal continental. Talvez as nuvens é que estejam mais baixas hoje. Atravesso-as, encho os pulmões com elas e, passo a passo, continuo a subida.

Atinjo uma das elevações da montanha. Pensava que era o cume, mas estava enganado. Avisto uma elevação superior do outro lado de um pequeno planalto sulcado por um caminho de terra. Desço até ao planalto – volto a atravessar nuvens, desta vez em sentido descendente – e percorro o trilho.
Passo por um enorme rebanho de cabras. Continuo a andar e concluo que afinal ainda não tinha visto nada. Cada vez há mais cabras. O caminho desce e curva à esquerda. Até lá, a vegetação está cheia de cabras. O rebanho parece interminável. Tão vasto que faz lembrar um exército num filme épico.
Junto à curva, sentada numa rocha, está a pastora. Enverga um longo quispo verde, chapéu vermelho e rói tranquilamente uma maçã.

Acena com acabeça ao meu cumprimento, algo intrigada com a visão de um tipo com montes de tralha às costas por ali àquela hora. A intriga deve ter-se adensado quando me viu abandonar o caminho e começar a subir diretamente pela encosta da montanha. O seu fiel companheiro, um enorme cão da serra, cumpre o seu dever e não tira os olhos de mim, em escrutínio de uma potencial ameaça. Mesmo após alguns minutos, quando me sento num rochedo para beber água e fotografar a legião caprina, ele continua especado a observar-me. Retiro uma barra energética da mochila e decido prolongar a pausa. Permaneço uns 10 minutos a observar aquele quadro pastoril.

Noto que o cão é preto mas tem as pernas brancas. Faz lembrar o “Peúgas Brancas”, que Kevin Costner batizou no “Danças com Lobos”.
As cabras continuam com o seu apetite insaciável e levanta-se uma brisa de fim-de-tarde que abana os arbustos à minha volta.  Atenta a esses ponteiros eólicos, a pastora decide que está na hora de regressar a casa. O Peúgas da Freita continua a fitar-me por alguns segundos, até concluir que eu não era ameaça digna da sua atenção e segue a dona com a cauda a abanar.

A vegetação é densa e difícil de percorrer. Mais à frente há um conjunto de pedregulhos que parecem ter rebolado pela montanha abaixo e que por ali ficaram, como peças de lego espalhadas. Subo lá para cima e vou escalando, de rocha em rocha, radiante com o trajeto divertido e com o tempo que estou a poupar.
O dia já começa a entardecer quando alcanço mais um planalto. Há uma ligeira elevação rochosa um pouco mais à frente, mas resolvo ignorá-la.
Este planalto parece-me perfeito para montar acampamento. Tem uma clareira que promete uma vista idílica que a neblina não me permite para já descortinar, mas que estará lá quando eu abrir as cortinas ao acordar. E, acima de tudo, este planalto cumpre o meu mantra do campismo selvagem.
O local está bastante distante de qualquer estrada pavimentada e transitada e é praticamente inacessível. Qualquer pessoa teria de percorrer horas a pé por trilhos e encostas de montanha durante a noite para vir cá ter. Ou seja, a probabilidade de alguém me vir aqui chatear é nula. E a probabilidade de ter uma noite tranquila, só eu, a montanha e as estrelas, está nos 99 por cento. Gosto desses números.

Janto qualquer coisa enquanto observo o espesso nevoeiro que se abate sobre o meu acampamento. Parece que não vou ter estrelas esta noite. Por outro lado, terei uma noite mais atmosférica e, de certa forma, ajustada.
Já é escuro quando recolho à tenda. Resolvo dar uma vista de olhos pelos apontamentos antes de tentar dormir. O feixe ténue da headlamp ilumina o bloco, que folheio durante alguns segundos até encontrar a página com uma palavra escrita a lápis no canto superior direito. Lobisomem. Por trás da palavra há uma história. Foi ela que me trouxe aqui esta noite.

Não muito distante daqui, há uma terra chamada Cambra. Segundo uma lenda local, essa povoação foi aterrorizada durante anos por um lobisomem. Os antigos juram que um ser monstruoso, meio lobo meio homem, surgia por entre a neblina nas noites de lua cheia e percorria as ruas em busca de vítimas. As pessoas trancavam-se em casa e ouviam os seus uivos aterradores a ecoar por entre todas as esquinas da aldeia. “Não te atrevas a sair à rua nas noites aluaradas”, era um conselho que rapidamente se tornou regra na região.
Após a caçada, o lobisomem levava as vítimas para o seu esconderijo, uma caverna húmida junto a um ribeiro, onde as devorava. “Havia por lá imensos ossos”, diziam os aldeões. Alguns falavam das paredes chamuscadas da cova, fruto das fogueiras que o monstro acendia para se aquecer nas noites mais frias.
Recentemente, descobri que essa caverna existe. Pretendo lá entrar ao amanhecer.

À medida que releio as minhas notas, constato que seria engraçado ouvir um uivo lá fora, neste preciso momento. Embora esteja na cordilheira de montanhas (Freita, Arada, Gralheira, Montemuro) onde se encontram o maior número de lobos a sul do Douro, a coincidência não acontece. Hoje, a noite é muda. Muda e cega. Deslizo o zip da tenda e verifico que o nevoeiro já cobre tudo. Desligo a lanterna e deixo que ele me aconchegue como uma manta misteriosa.

 

 

 

Desperto com o azul-escuro do céu a clarear e a encher-me a tenda com luz crepuscular. Espreito lá fora e, pela primeira vez em muitas horas, tenho vista limpa para o céu. A lua parece uma bola esvaziada no seu quarto minguante. “Está explicado porque não houve uivos nem visitas de lobisomens”, concluo.

 

 

 

 

Desmonto rapidamente o acampamento, meto a mochila às costas e começo a descer pela encosta contrária da montanha. Atravesso um bosque com tapete de caruma, encontro um trilho sinalizado por uma das maiores mariolas que já vi, retiro a teleobjetiva à pressa da mochila para fotografar uma ave de rapina. Tudo a passo acelerado. Continuo sem saber que horas são. Talvez sejam oito e qualquer coisa quando passo por um campo de cultivo e encontro uma senhora na casa dos cinquenta, que aceita baixar a enxada por uns minutos e trocar dois dedos de conversa comigo. Conhece a lenda, mas com um interveniente diferente.
Na versão que ouviu da avó na infância, a metamorfose não era em lobo, mas em cavalo, que percorria a galope as nove freguesias de Vouzela, “para cumprir o fado”. Fala-me de um trilho que chamam de “trilho medieval” que vai dar a Cambra e à gruta que mencionei. Despeço-me e afasto-me com um sorriso entusiasmado. Isso era-me familiar.

 

Sempre adorei o mito do Lobisomem. Desde as tardes livres do ciclo quando ia ao videoclube alugar filmes como “An American Werewolf in London” ou “Silver Bullet”, que via com as persianas das janelas fechadas mas confortado por saber que o sol estava lá fora. Requisitava livros na biblioteca, ouvia histórias dos mais velhos. Quando cresci e comecei a viajar sozinho por Portugal, era comum lembrar-me desse mito sempre que visitava aldeias nas montanhas. O interior está repleto desses contos, que felizmente vão passando de geração em geração e sobrevivendo à passagem desmistificadora do tempo. Também eles são pedaços de cultura que fazem parte do nosso património oral.

A versão original do mito é fácil de resumir: Um homem que se transforma num ser híbrido, meio lobo, meio homem, nas noites de lua cheia e só volta ao estado normal ao amanhecer.
O mito tem uma variante muito predominante em Portugal. Aliás, acho que ouvi mais histórias sobre essa variante do que sobre a versão original.
Nessa variante, o lobo dá lugar a um cavalo. Chamam-lhes “corredores”. Homens amaldiçoados pelo destino, que se transformam e são obrigados a percorrer as suas aldeias durante toda a noite. No século XIX, Alexandre Herculano descreveu-os assim: “são aqueles que têm o fado ou sina de se despirem de noite no meio de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem cinco voltas, espojando-se no chão em lugar onde se espojasse algum animal, e em virtude disso transformarem-se na figura do animal pré-espojado. Esta pobre gente não faz mal a ninguém, e só anda cumprindo a sua sina”.

Acreditava-se que a única forma de quebrar a maldição seria espetá-lo e fazê-lo sangrar enquanto estivesse sob a forma animal. A origem da maldição é desconhecida, embora haja quem acredite que esta atinge sempre o sétimo dos filhos. Assim acreditava o meu bisavô materno, José Maria dos Santos. Algures na década de 40, na aldeia de Jardo, pequena povoação nas margens do Rio Côa, ele e um grupo de amigos suspeitavam que um jovem adulto, o sétimo irmão de uma família local, era o responsável pelo estridente barulho de galope que se ouvia em noites de luar nos caminhos de terra batida que cruzavam a aldeia. Num serão de Inverno aquecido com copos de jeropiga, chegaram a uma decisão. “Temos de livrar o rapaz do encantamento”. Afiaram a ponta de uma vara comprida e passaram a vigiar a casa do jovem nas noites de lua cheia.

A aldeia de Jardo, em meados do século XX

Numa dessas noites, o destrancar da porta prendeu-lhes a atenção. Viram-no sair e enveredar por um trilho que percorria o bosque. Seguiram-no à distância, com o luar a alumiar o caminho. Após meio-quilómetro de mato, perderam-no de vista. Olhavam em redor e nada viam, nada ouviam. Até que um deles aponta o dedo numa direção, sem conseguir pronunciar uma palavra. Lá ao fundo, a despontar da escuridão, surge um enorme cavalo branco. Fita-os por um segundo e começa a galopar na sua direção. O grupo de homens de barba rija corre desenfreadamente. “É hoje, é hoje que vamos desta para melhor”. Com o batuque das patas vigorosas do animal cada vez mais próximo, percorrem as ruelas da aldeia em desespero, sem coragem para olhar para trás. Entram aos tropeções na casa de um deles e fecham a porta com força. Caídos pelo chão, tentam a todo o custo recuperar o fôlego. Mas ele é-lhes roubado mais uma vez, por um violento coice na porta. “Parecia um trovão”. Com o sangue gelado, não saem do sítio, nem sequer ousaram dizer uma palavra, até os primeiros raios de sol entrarem na janela.
“Eu próprio vi marca da ferradura enterrada na madeira da porta”, disse-me, décadas depois, o meu avô, numa das inúmeras vezes que me contou a história. Já o pai dele e os seus amigos, nunca mais importunaram o vizinho. Julgo que nem sequer voltaram a tocar no assunto, fora do seio familiar.

Familiar é também a árvore com folhagem avermelhada que avisto lá à frente. Penso que já passei por aqui. Gostava de trocar impressões com mais alguém, mas desde o encontro com a agricultora que não encontro vivalma. Só eu, a árvore ruiva e um “mapa” gatafunhado a lápis de um trilho que julgo não estar a seguir.
Sento-me, pouso a mochila e olho em redor. Surge-me no pensamento outra vez a história do meu bisavô e sorrio ao imaginar aqueles homens endurecidos pela vida a correr a sete pés pelas ruas da aldeia. A certa altura já me estou a rir sozinho. Para além das gargalhadas solitárias, só se ouvem os pássaros, uma brisa ligeira que por vezes arrasta as folhas no chão e um som distante de água em movimento. Após alguns segundos, levanto-me num sobressalto. Água! A gruta ficava perto de um ribeiro!
Prossigo, entusiasmado e em passo acelerado pelo bosque. O mapa já está no bolso. São as orelhas a liderar o caminho.

Seria irónico, todo este plano, subidas e descidas de montanhas, pernoitas em planaltos cobertos de nevoeiro, lendas e reminiscências de contos antigos, para no final não encontrar a famigerada gruta. Estava já preparado para retirar o bloco de notas da mochila e escrever algo rebuscado como “tinha de ser um dos quatro elementos a sussurrar-me o caminho”, quando paro. O tempo parece ter congelado e a aragem matinal de fim de inverno não tem nada a ver com isso. As pernas estão petrificadas, a boca aberta e as mãos esfregam os olhos, que não querem acreditar. “Surreal”, balbucio em voz alta.
Um percurso envolto em mistério na senda de uma lenda antiga e aterradora. A travessia de bosques e montanhas em busca do covil de um ser mitológico. A orientação – intuitiva e, por fim, auditiva – por entre a natureza cerrada em busca de um trilho milenar que me poderia levar ao derradeiro destino. Tudo isto para a ter agora à minha frente. Firme, assente, resoluta. Não sorri, mas imagino-a desafiante e trocista enquanto me encara, à espera do meu próximo passo. Respiro fundo, abano a cabeça enquanto sorrio e passo pela enorme placa de madeira com a inscrição “Cova do Lobisomem”.

A entrada da caverna está rodeada por vegetação, que cai à sua volta como uma franja despenteada. Por trás dessas madeixas verdes, mergulha na escuridão.
Acendo a headlamp e começo a percorrê-la. A galeria é mais larga do que alta e extremamente comprida. Há um pequeno curso de água no lado esquerdo da gruta, que está coberto de musgo. As rochas são húmidas e frias e no ar prevalece um cheiro a terra fresca, recentemente banhada pela neblina matinal.
Após uns 15 metros de passos cautelosos, a caverna parece fechar-se. Aproximo-me e com a luz ténue da lanterna vislumbro uma passagem bastante estreia. Deixo a mochila no chão e espremo-me por entre a fenda, até chegar a uma câmara circular, bastante mais alta e com dois ou três metros de largura. Num dos cantos, a rocha está chamuscada. “Era aqui que a besta se aquecia nas madrugadas frias”.

 

Há cinza e pedaços de madeira ardidos. Alguém acendeu esta fogueira recentemente. Terão pernoitado aqui? De que terão falado? Que conversas terão ardido neste antro apinhado de lendas e superstições? Sento-me no chão, sem respostas, mas convicto de uma coisa. Se fosse eu, sei bem que conversa é que iria ter. Iria olhar os meus companheiros de expedição nos olhos e dizer: “Os lobisomens existiram”. Depois, encararia com um sorriso a sua perplexidade e, por entre o clarão das chamas da fogueira, acrescentaria: “Talvez ainda existam”.

 – Andas a ver filmes a mais, Victor…

– Já ouviste falar em hipertricose?

– Não.

– É uma doença rara, por mutação genética, onde o corpo humano fica completamente coberto de pêlos. E não me refiro a tufos de pêlo no peito. Estou a falar de pêlos felpudos, que podem atingir 10 a 20 centímetros de cumprimento e cobrem todo o corpo, excepto as palmas das mãos e dos pés.

– A sério?

– E sabes o que é licantropia?

– Sim, dessa já ouvi falar. É uma doença mental onde a pessoa acredita que é um lobo, não é?

– Exactamente, a licantropia clínica é uma patologia psiquiátrica, geralmente associada à esquizofrenia, onde um ser humano acredita que se transformou, ou está em processo de se transformar num animal, geralmente um lobo. Com o agravar dos sintomas, a crença torna-se numa convicção absoluta. A pessoa considera-se um lobo. E age em conformidade.

– Realmente, a própria metamorfose acontece, mas é psíquica e não física, como nos filmes.

– Precisamente! Agora imagina uma pessoa que sofre de ambas as enfermidades. E imagina-a na antiguidade, ou até mesmo num passado não tão distante mas num local remoto, onde a ciência não chega para dar resposta a esses fenómenos. Tens aí um lobisomem!

– Epá, que arrepio danado.

– Arrepiante, indeed…

– Pobres criaturas! Quantos terão existido ao longo dos tempos…

– E quantas vítimas não terão sofrido às mãos, ou devo dizer garras, desse triste fado…

Um ruido desperta-me do diálogo imaginário. Não vem do exterior. É do interior. É um som grave, seco e arrastado. Com o entusiasmo esqueci-me de comer e o meu estômago está a protestar. Antes de me levantar, surge uma ideia. Vai dar algum trabalho, especialmente porque ainda estou em jejum, mas que se lixe. Saio da gruta em passo acelerado e recolho lenha nas proximidades. A maior parte dos paus que encontro ainda estão húmidos do orvalho, mas com alguma insistência lá encontro alguns relativamente secos. Regresso à gruta, retiro o isqueiro da mochila, rasgo algumas páginas em branco do bloco de apontamentos e recolho alguns mantimentos: Uma barra energética, bolachas integrais, o cantil com água e uma saqueta de chá preto.
Acendo a fogueira e tomo o pequeno-almoço na Cova do Lobisomem.

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