Chovia em Londres. Tinha deixado o guarda-chuva no apartamento, mas não era isso que me ia afastar daquelas ruas. “We’ll survive the rain”, disse. Percorri toda a West End, com as cores dos cartazes dos teatros refletidas no alcatrão molhado, até o encontrar, na esquina que ele domina desde 1891 – fazia naquela Primavera 110 anos – com a sua imponente fachada renascentista de tijolo alaranjado. Lá estava a perpétua imagem de Cossete, com olhos tristes e cabelo desgrenhado ao vento, longe de saber o que o futuro lhe reservava. Entrei no Palace Theatre com um sorriso que esmoreceu ligeiramente, quando descobri que os únicos bilhetes que se coadunavam com o meu orçamento de estudante tinham a vista parcialmente obstruída para o palco. “Não, assim não”. Não compensava ver algo tao belo de forma parcial. “Os sonhos não existem para ser vividos assim”, pensei, antes de regressar à chuva.

 

Tinha 12 anos quando descobri “Os Miseráveis”, de Victor Hugo. Descobri-o da mesma forma que descobri Stonehenge, Petra ou Galileu. Nas páginas dos livros do Patinhas. Nessa tarde de Novembro de 1989 trouxe para casa um Hiper Disney – o alfarrábio dos livros da Disney – e essa história estava lá. Penso que era um recorde, 113 páginas só para ela. “O Mistério dos Candelabros”, inspirada na obra do romancista francês.

Foi encanto à primeira leitura. Por coincidência, soube que poucos dias depois ia passar o filme na RTP. Vi-o com o livro na mão e com lágrimas nos olhos. Era um reforço maduro do que o livro de banda-desenhada me tinha oferecido. Uma história sobre a possibilidade de redenção, por mais distante que ela pareça estar na alma de um homem. Sobre a capacidade de perdoar e do quão transformador é esse ato na vida dos envolvidos. Sobre as repercussões – incríveis, inimagináveis, tão invisíveis quanto imensas – que um simples gesto bondoso pode derramar nas telas onde todos os dias e noites os homens traçam o seu livre arbítrio.  Sobre a resiliência perante a adversidade e a injustiça. Sobre o quão quente pode ser o manto da fraternidade.  Sobre o heroísmo anónimo dos que ousam lutar pelos seus ideais. Sobre a incondicionalidade do amor.

Esse telefilme, que saiu um ano depois de eu nascer, continua hoje a ser a minha adaptação preferida. Vinte anos depois surgiu outra, com maior orçamento e menor impacto emocional, com narrativa e personagens demasiado condensadas, sem espaço para criar empatia. Dessa vez, o olhar permaneceu seco.

Os anos foram passando e havia dois, talvez três desejos tácitos que me acompanhavam. Ver uma adaptação cinematográfica de excelência, ver o musical ao vivo e obter uma edição especial para a minha biblioteca, que se coadunasse com a importância que a obra tinha para mim. Por isso, sem ser uma obsessão ou sequer uma intenção, mas numa espécie de anseio subliminar, os Miseráveis caminhavam lado a lado comigo.

Quando eu soube que tu ias existir, a caminhada perdurou. Sabes, há uma tradição na nossa família que já existe há cinco gerações, onde o primeiro filho recebe o nome do pai. Não a quis interromper. Com a concordância da tua mãe, decidi mantê-la, mas com um twist. Retirei o Manuel – ao qual nunca achei particularmente piada – e acrescentei Hugo. Victor Hugo. Nome de literatura, de arte, cultura e sabedoria antiga. Mas não só. Victor provem do latim victor, que significa ‘vitorioso’. Hugo, do germânico hug: ‘inteligente’. Pareceu-nos uma boa combinação.
Decidimos também que Vic seria o teu diminutivo, que a tua mãe transformou, carinhosamente, em Vickinho. Pelo menos até seres grande. Ou achares que já és grande!

Enquanto estiveste na barriga da tua mãe fizemos montes de planos giros. Demos caminhadas em montanhas e florestas. Fomos à praia e mergulhámos no mar. Percorremos o topo de aquedutos com 500 anos. Sentámo-nos nas margens de lagos glaciares. Entrámos em escape rooms cheios de mistério. Fotografámos ruínas imponentes. Lemos livros à sombra de uma árvore. Jogámos laser-tag. Fomos ao cinema ver vários filmes, incluindo um chamado “The Curse of la Llorona” que deixou a tua mãe agarrada à barriga o tempo todo. Na altura, eu disse-lhe que não tinha lido a sinopse e desconhecia uma certa particularidade do argumento que pode ser um pouco assustadora para futuras mamãs. Não lhe contes, mas se calhar eu até sabia um bocadinho. É um segredo nosso, ok?

 

Durante uma tarde na Feira do Livro daquela que seria a tua cidade, um dos três desejos realizou-se. Encontrei lá um senhor que dedicou a sua vida aos livros, um senhor cuja história o teu pai teve a felicidade de contar. Abracei-o, conversámos e, logo naquele momento, senti que se alguém me arranjaria uma edição especial da obra, seria ele. Estou a olhar para ela no momento em que escrevo estas linhas, com as suas lombadas verde-escuras com iluminuras douradas, de I a V numa das prateiras de honra da minha biblioteca.

 

 

Um dia serão teus. Vais poder visitar-me neles sempre que quiseres. É uma ideia muito peculiar, não é? Vou-te contar uma história. Há muitos anos atrás, houve um dia de Inverno em que precisei muito de espairecer. Vesti um casaco quente, meti uma mochila às costas e fui para o melhor sítio onde se arejam ideias: a natureza. Subi a montanha mais alta do Caramulo – não é nenhuma façanha, aquilo tem escadas até lá acima – e tive a sorte de ter o cume só para mim. Tinha duas coisas na mochila: uma garrafa pequenina de Monte Velho e um livro de poemas de Walt Whitman. E sabes uma coisa? (Faz de conta que te estou a dizer isto a sussurrar) A página 35 é mágica! Não por causa de artifícios de escrita, nada disso. É pela ideia, um conceito tão simples e, no entanto, tão significativo. É um poema de uma só página, escrito em 1859 e onde o poeta se dirige a quem o iria estar a ler séculos depois. A quem lhe estaria a fazer companhia através daquelas linhas. No fim, diz-lhe: “Sê tão feliz como se eu estivesse contigo”. E depois abre um parêntesis: (Não penses que não estou agora junto a ti).

 

Na Primavera antes de nasceres, fizemos uma caminhada na Serra de Montesinho e eu perdi-me da tua mãe. Eu – o suposto tipo que domina a orientação nas montanhas – tinha ficado para trás a analisar uns minérios estranhos e depois, ao seguir caminho, falhei uma marca de trilho e desencontrámo-nos. A tua mãe, contigo na barriga há três meses, andou sozinha 45 minutos no meio da serra, só porque confiei tanto na dedução – “É por aqui, seguramente” – que nem me preocupei em confirmar os factos, gravados a vermelho e amarelo no tronco de uma árvore. Um dia vais perceber que esse é um dos mais importantes e difíceis ensinamentos que podemos obter. Que a nossa capacidade de dedução – por mais límpida e óbvia que ela nos pareça – nem sempre anda de mãos dadas com a realidade. Muitas vezes, leva-nos para maus caminhos e afasta-nos do que é importante. Foi enorme o sentimento de alívio quando vos (re)encontrei.

 

Em todos esses planos, por vezes surgia uma ânsia de acelerar o tempo, de querer ter-te cá fora e começar a mostrar-te o mundo. Estava e estou ansioso por te mostrar o mundo. Nunca parcialmente, com visões obstruídas, mas por inteiro, com a vista desimpedida para tudo o que te faça sonhar e por onde o teu pensamento e a tua imaginação possam avistar os mais longínquos horizontes.

Não é fácil restringi-la; essa vontade. Há tanto para ver, tanto para viver, tanto para cumprir. Recebi uma infância feliz, por isso devo-te uma também. Não é um lugar comum. Conheço-lhe a importância, a sua natureza inspiradora. Quando fértil, talvez seja um terreno onde se semeiam e colhem frutos como a mania de ver o lado belo das coisas, de relativizar a chuva, de entender que a alegria e a amargura, a confiança e a desconfiança, o amor e o ódio, o positivo e o negativo são igualmente contagiantes, de procurar o extraordinário que habita em tudo que aparenta ser ordinário. Não foi por acaso que Rilke, na sua “Carta a um Jovem Poeta”, a apelidou de “riqueza preciosa e régia, esse tesouro das recordações”.

Certificar-me-ei que ele permanece reluzente, sempre que abras o baú. Podes e deves abri-lo sempre à vontade. Com o mesmo à vontade que te sentirás para conversar comigo sobre tudo. Exceto durante filmes no cinema. Ou musicais em velhos teatros londrinos.

Os sonhos existem para ser vividos assim. Daqui a pouco vou-te ver nascer.

 

 

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