“Devo estar a ficar velho e responsável”, pensei, após desligar o telemóvel. Acho que era a primeira vez que cancelava uma expedição devido às condições meteorológicas. Tinha combinado um trekking durante dois dias na Rota do Vale Glaciar, na Serra da Estrela, que inclui a ascensão ao ponto mais alto de Portugal continental. Era algures nesses dois mil metros de altura que me imaginava a montar o acampamento. No entanto, há quatro dias que consultava as previsões do tempo na região e o símbolo da trovoada teimava em permanecer lá. Um acampamento selvagem àquela altitude, com as condições morfológicas daquela montanha e com trovoada à mistura, seria sinónimo de uma noite memorável ou de uma dança demasiado exótica com o perigo. E eu já tivera a minha noite memorável com raios e coriscos. Em New Lowell, um parque florestal no Sudeste canadiano, vivi a noite de tempestade mais temperamental que tenho memória em todos os meus acampamentos. Os relâmpagos pareciam entrar pela tenda adentro e os trovões eram ensurdecedores. O estrondo de um deles foi tão intenso que jurei ter sentido a terra tremer. Quando o dia clareou, descobri que provavelmente tremeu mesmo, mas com o corpo inerte de uma árvore, derrubada por um raio a cerca de 400 metros da minha tenda. Os meus 19 anos coloriram o episódio, ao ponto de o tornar atrativo. Hoje descobri que devo ter arrumado esses lápis de cera pueris numa gaveta distante. Não os vou procurar. Vou antes procurar uma alternativa. Faltam menos de 24 horas para o arranque.

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Parte do tronco da árvore abatida por um raio na floresta de New Lowell, no Canadá.

Sempre senti fascínio pelas aldeias-fantasma de Portugal. Esses locais cheios de silêncio e memórias que vagueiam pelas ruelas de pedra e espreitam pelas esquinas de xisto. Já percorri algumas das doze que salpicam a montanha da Lousã; Já estive em Vilarinho das Furnas; já fui a Drave, que é apelidada de “aldeia mágica”, mas não nas condições ideais (estava lá um acampamento de escuteiros e quero lá pernoitar com a aldeia totalmente deserta); Colmeal está demasiado longe para tão pouca antecedência; e depois há a aldeia da Pena, de onde sempre me chegaram relatos entusiasmados, ao ponto de ser classificada como “mítica”. Fiz a proposta aos meus três companheiros de viagem e eles receberam-na com agrado. Um trekking de um dia, durante 14 quilómetros e com desnível dos 500 aos 1050 metros.

Arrancamos sábado bem cedo. Paramos em São Pedro do Sul para tomar um café e aproveitamos para pedir algumas informações sobre a aldeia onde começa o trilho, Covas do Rio. Uma das empregadas da padaria é de lá e indica-nos o melhor caminho a seguir. No entanto, diz que há “demasiadas voltas” mais lá para a frente, pelo que nos sugere voltar depois a perguntar. Certíssimo. À saída da cidade, atravessamos uma pequena povoação com meia dúzia de casas. Não há ninguém na rua mas no pátio da última casa há duas crianças de cinco ou seis anos a brincar. Paro lá o carro, abro o vidro e pergunto: “O vosso pai está em casa?”. “Feita a pergunta dessa forma, pareces um pedófilo a averiguar se a costa está livre”, dispara a Xana, sorridente. O miúdo riu-se ao ver-nos a rir e foi a correr chamar o pai, que surge segundos depois, simpático mas com informações nada simpáticas. Diz-nos que ainda estamos a 30 quilómetros da aldeia, o dobro do que imaginava. Contra a minha religião no que diz respeito a viagens não urbanas, lá resolvemos recorrer ao GPS da Teresa, nem que seja para controlar a distância. Um braço levantado de agradecimento ao pai e arrancamos.

Após uma longa e vertiginosa descida que se assemelha a uma montanha russa de alcatrão, chegamos a Covas do Rio pouco depois das 11 horas. É uma aldeia típica da região centro portuguesa, com ruas estreitas e casas tradicionais de xisto e ardósia, embora existam também algumas habitações mais convencionais, de cimento e telha, que destoam ligeiramente mas não o suficiente para a descaracterizar. Visitamos a povoação, conversamos com alguns locais, enchemos os cantis na fonte do centro da aldeia e arrancamos para o trilho.

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Minutos antes, um agricultor tinha apontado para um desfiladeiro alto e rochoso que se avista à distância, sulcado entre duas enormes montanhas, onde nada se vislumbra a não ser escarpas de rocha e densa vegetação. É difícil imaginar uma passagem por aquela via, mas ele garantira que o caminho para a Aldeia da Pena era por ali. Não questionamos e arrancamos na direção daqueles gigantes graníticos. A primeira meia hora de caminhada é feita num trilho fácil de seguir, ladeado por muros de pedras cobertas de musgo. Este percurso não está marcado, não existem as típicas riscas amarelas e vermelhas. Na primeira bifurcação que encontramos, seguimos a indicação da mariola, um conjunto de pedras sobrepostas em forma de pirâmide que são uma forma de sinalização centenária criada por pastores para se orientarem nas serras. Há uma espécie de código tácito de montanhismo que sugere ao caminhante que contribua para a manutenção desses sinais valiosos, ou reconstruindo os que sucumbiram às intempéries ou adicionando uma pedra a um já existente. Tenho o hábito de o fazer.

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Pouco a pouco, o trilho começa a ficar cada vez mais estreito, primeiro começou a ser comprimido pela vegetação, depois pela ribanceira que nos acompanha do lado direito, juntamente com o som de um curso de água lá em baixo, algures sob a copa das árvores.
Deduzo que estamos no trilho que os locais apelidam de “Caminho Onde o Morto Matou o Vivo”. A explicação é tão trágica quanto irónica: A Aldeia da Pena situa-se num vale profundo e antigamente não tinha um cemitério. Os mortos eram transportados até à aldeia mais próxima, Covas do Rio, por um trilho ingreme e sinuoso, tão estreito que só consegue passar uma pessoa de cada vez. O caixão era carregado aos ombros por duas pessoas, uma à frente outra atrás. Numa dessas travessias fúnebres, o carregador da frente tropeçou e o caixão caiu em cima dele, matando-o.
Uns largos minutos à frente, é possível descer ao curso de água. Resolvemos fazer uma pausa para relaxar. Estão 32 graus, sabe tirar as botas e mergulhar os pés na água fresca, deitar na superfície lisa das rochas e desfrutar da sombra do arvoredo e do som bucólico do ribeiro e das suas pequenas quedas de água. Aproveitamos para hidratar e comer uma barra de cereais.

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Em boa hora o fizemos, a partir daqui o troço aumenta consideravelmente o declive. O esforço é maior e a energia suplementar é bem-vinda. Por vezes paramos e olhamos para a montanha do lado direito, um maciço cinzento que enverga uma túnica verde de mato que se ergue tanto que quase sentimos uma ligeira tontura ao acompanhá-lo com o olhar até ao topo. Mais à frente, avistamos uma pequena piscina natural com água cor de esmeralda e longos ramos a abrigá-la do sol ardente de final de primavera. Os raios que trespassam a folhagem oferecem uma convidativa mistura de tonalidades à água. É bem mais ampla do que a “banheira” onde nos refrescámos minutos atrás, mas já estamos vestidos, de mochila às costas e com vontade de seguir caminho, por isso optamos por declinar o convite.

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A meio da subida está uma pequena plataforma, onde se ergue um solitário, gordo e contorcido tronco oco. Daqui, é possível avistar Covas do Rio, que parece inacreditavelmente longínqua e inacessível. Quem diria que está apenas a hora e meia de caminho. Entro no ventre da árvore e registo a sua silhueta distante com uma fotografia, emoldurada pelo tronco rugoso.

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Continuamos a subir por entre vegetação de um verde tão vívido que parece viscoso, o ondular das folhagens é pegajoso e cola-se aos nossos sentidos e à nossa imaginação. Curiosamente, o trilho prossegue por uma zona que evoca uma floresta húmida da América Latina, com corpos graníticos tatuados a musgo e líquenes e com lianas que descaem ocasionalmente, como madeixas despenteadas. Passamos pelas ruínas de um velho moinho, já sem telhado, portas e janelas, que em tempos mais áureos terá aproveitado as águas do ribeiro para dar sustento a alguém. A partir daqui o trilho sobe a pique, numa tosca escadaria de pedra que ziguezagueia pelo penedo acima. Custa imaginar um caixão a ser transportado por aqui. Mesmo com botas de montanhismo é fácil escorregar nos calhaus soltos, num momento de distração. E não há espaço para cair a não ser para baixo.

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Os ponteiros marcam 14: 25 quando atingimos o topo. Aqui, na crista do desfiladeiro, é possível descortinar uma passagem, um corredor natural que serpenteia entre as rochas e que, depois de percorrido, nos permite ver finalmente o que existe do outro lado da montanha. Para além de vastos planaltos acastanhados que se misturam com o verde luxuriante da mancha florestal do vale, já é possível avistar os telhados de ardósia das casas da Aldeia da Pena, que brilham com o reflexo do sol.
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Deixo os meus companheiros seguir viagem, retiro o cantil da mochila e permaneço ali uns instantes a saborear o momento. É impressionante a existência deste tipo de trilhos recônditos, que sulcam tranquilamente locais que à distância se considerariam inacessíveis e por onde se colocaria fora de hipótese qualquer possibilidade de passagem. Surge-me na memória o filme “300”. A parte onde Ephialtes – um grego acossado pelo facto dos espartanos não o deixarem integrar o seu exército devido às suas deformações físicas – cria uma aliança com o rei invasor, Xerxes, ensinando-lhe um trilho secreto por entre as montanhas que permite ao exército persa obter uma vantagem territorial que se revelaria fulcral no desfecho da batalha. Essa influência foi sempre sendo determinante ao longo dos séculos. Viriato usou a mesma vantagem sobre os romanos na Serra da Estrela, Pelágio sobre os mouros nas montanhas das Astúrias, os vietcongs sobre os americanos nas florestas vietnamitas, os mujahidins sobre os soviéticos nos desertos afegãos. Só no presente século é que a tecnologia alterou para sempre a forma como as guerras são travadas e despiu a significância desse precioso conhecimento territorial.

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O trilho segue por um pequeno bosque à direita, mas os planaltos parecem apetecíveis para caminhar, resolvemos atravessá-los. À medida que nos aproximamos das árvores, ouvimos o tilintar das campainhas do gado, por vezes mais próximo do que as espessas ramagens verdes nos deixam observar. Numa pequena clareira num patamar acima, está a única passagem que nos permite regressar ao trilho que desce em direção da aldeia. O único problema é que entre nós e essa passagem está um enorme boi com olhar de poucos amigos. Ou enfrentamos o bicho ou retrocedemos seis ou sete centenas de metros até à curva do trilho inicial.  Resolvemos atirar uma moeda ao ar. Caras, não seguimos em frente e coroa, voltamos para trás. Saiu caras.

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Já no trilho, passamos a ter a companhia de dois cavalos, que nos vão seguindo, paralelamente ao caminho, separados por uma rústica cerca com paus e estacas de madeira. A Teresa não resiste a fazer-lhes uma festa no focinho e o gesto encoraja-os. Saltam literalmente a cerca e passam a seguir-nos, mas desta vez atrás de nós.

O caminho é estreito e os seus cascos são cada vez mais audíveis no cascalho, à retaguarda. São animais amistosos mas se acelerarem o passo, não há espaço para todos. Envoltos neste caricato momento, vamos descendo aquele caminho de cabras e soltando algumas risadas que talvez escondam mais nervosismo do que outra coisa. Até que atravessamos um pequeno riacho e eles ficam por lá a beber água.

 

 

Entramos finalmente na mítica Aldeia da Pena, com as suas adoráveis casas pequeninas de xisto e telhado de ardósia. Paramos na fonte, para passar água fresca pelo cabelo e encher os cantis. Estávamos cansados e com a sensação de objetivo atingido. Finalmente naquele lendário vale perdido, longe de tudo, incluindo da noção que a verdadeira aventura estava ainda a começar.

[Ler segundo capítulo]

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