O HÓSPEDE DO HOTEL ABANDONADO
O funcionário destranca a porta e pousa as malas na colcha bege impecavelmente engomada da cama. Dirige-se às cortinas e sorri antes de as abrir. Sabe que do outro lado daquelas janelas enormes está uma paisagem que vai tirar o fôlego ao hóspede. Vai ouvir expressões de espanto, incredibilidade, deslumbre. De alguma forma, essas expressões orgulhavam-no. E serviam de alento especialmente nos dias mais difíceis, onde chegava a duvidar se estava na profissão certa. Nesses momentos havia uma sensação confortante de pertença, sentia que fazia parte de algo especial, algo que surpreendia todos os olhares, que desarmava o mais cínico dos semblantes, que despertava uma centelha de entusiasmo, mesmo nas auras menos inflamáveis. Já com a gorjeta no bolso, ao sair do quarto tinha o hábito de olhar para trás e ver sempre os hóspedes na mesma posição, petrificados perante aquele véu tão vítreo quanto indiscreto que permitia contemplar cada centímetro do corpo daquela medusa paisagística.
Enquanto desce a escada em espiral que leva à receção, o funcionário sente que pisa um chão cimentado, frio, húmido. Era capaz de jurar que este já estivera alcatifado. Já no balcão, fica a aguardar que a abertura da moderna porta-automática anuncie a entrada dos próximos hóspedes. Mas ela não volta a abrir. Sente-se intrigado, mas estranhamente não consegue explicar a razão dessa intriga. Resolve não pensar nisso. Opta por debruçar os pensamentos sobre o hóspede na suite. Ainda estará deliciado com a paisagem? Fecha os olhos e imagina-o. O sorriso regressa ao seu rosto e permanece lá, mesmo quando sente uma brisa inesperada. É suposto estar tudo fechado, não faz ideia de onde ela vem, mas sabe-lhe bem. É Verão e algo se passa com o ar condicionado. Há quanto tempo já o deviam ter arranjado? Não encontra uma resposta, mas também não importa. O que importa é o hóspede. Esse estranho ser que, estranhamente, dá sentido à sua vida. Um ser que me ajuda a ser? Um estranho que me faz sentir estranho? Já chega de perguntas, está tão farto de perguntas. As perguntas podem ser uma maldição perpétua quanto não existem respostas. Volta a acolher o hóspede nos seus pensamentos. Não sabe porquê, mas tem medo que um dia ele saia de lá. Tantas estrelas, pelo menos cinco, cinco inatingíveis estrelas e, no entanto, ele pode vir a querer sair de lá. Porque raio há-de querer sair de lá? Mais uma pergunta. Mais uma maldição. Estremece o rosto, como se quisesse afastar esses maus pensamentos. Há tantos pensamentos que gostaria de querer afastar. Alguns são recordações. Deixou de conseguir entender as recordações. Todas elas lhe parecem tão recentes e, simultaneamente, tão longínquas. Recordar tornou-se um quadro abstrato. A tela? Ou a tinta? Mais perguntas, porque não consigo exorcizar essas perguntas da minha cabeça?
É tarde, talvez já tenha passado a sua hora de saída. Ultimamente não tem ouvido o toque cadenciado dos ponteiros do relógio francês ornamentado em ferro, preso a uma das colunas de mármore do átrio. Em boa verdade, também não se lembra de ter saído, mas não quer arriscar mais uma pergunta. Respira fundo, cinco ou seis vezes, antes de conseguir voltar a pensar no hóspede. Mesmo esse pensamento feliz requer esforço de vez em quando. Ele não diz a ninguém, mas esse esforço amedronta-o. Teme-o, talvez mais do que a morte. Será que um dia a imagem do hóspede deliciado perante uma das vistas mais idílicas do país se vai desvanecer do seu pensamento? Como nevoeiro imaculado que se dissipa e deixa à mostra o veludo que se transformou em trapos rasgados que ondulam ao sabor do vento? A tinta que se transformou em bolor, os móveis que se transformaram em destroços? O sonho que se transformou em vazio? Que disparate, diz para si. Aquela Medusa é imortal. É imune à neblina do tempo, à espada e ao escudo de Perseu, talvez até à própria razão. Por isso, pouco me importa tudo o resto, o que sei, o que desconheço, o que temo vir a conhecer. O hóspede está lá em cima.
Este texto foi inspirado por uma visita ao Hotel Monte Palace, na ilha de São Miguel (Açores), abandonado há 27 anos. Na nossa página do Facebook foi publicado um álbum recheado de fotografias dessa visita. Na descrição do álbum, encontram um breve resumo da efémera e emblemática história do hotel.
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