O MANTO QUE NÃO SE RASGA
Já tinha ouvido falar da sala vermelha. Por vezes ouvem-se gritos agonizantes que rasgam a noite e ecoam nas paredes e nas grades desta velha prisão. Dizem que eles vêm sempre lá de dentro. Habituámo-nos a conviver com esse fantasma de tijolos e azulejos, esse antro mórbido que nos aterroriza mas, ao mesmo tempo, nos ajuda a relativizar tudo o que passamos cá dentro. “Ao menos não estou na sala vermelha”; quantas vezes o repetimos em pensamento, como uma espécie de manto em que nos envolvemos para atenuar o desconforto, a dor e o medo quando nos interrogam de forma mais agressiva? Quando acordei esta manhã, não fazia ideia que ele se ia transformar em farrapos. E que seriam os meus gritos a tecê-lo para os outros.
A Mysterio organiza experiências de terror imersivas. São exímios a recriar um ambiente específico e a permitir-nos vivenciá-lo como se fosse real. Já tinha ido a três eventos diferentes. “Vultos 2”, onde tentamos sobreviver a uma horda de zombies num edifício laboratorial onde também vive um psicopata com instintos sádicos; “Asilo”, onde tentamos escapar de um velho asilo onde inocentes e loucos coabitam num ambiente sinistro e caótico; E “Medo na Mata”, onde tentamos sobreviver num bosque assombrado onde os nossos maiores pesadelos se materializam.
Quando o mentor criativo destas experiências, Leonel Alves, me falou sobre os seus planos para o seu último evento, confesso que senti um calafrio. “Este gajo é maluco!”, pensei. Só o disclaimer que tinha de ser assinado previamente já era suficiente para nos gelar os ossos. Quando ele me convidou para reunir um grupo e testar o conceito num edifício abandonado, disse-lhe que sim. Posteriormente, foi surgindo um ou outro pensamento receoso que geralmente culminavam sempre na questão: “Onde raio é que eu me estou a meter?!”. Mas a curiosidade aliava-se ao estímulo do desafio e, juntos, desarmavam com relativa facilidade esse ponto de interrogação. “Seja o que for que eu vá encontrar lá dentro, vou conseguir superar”. Esse era o pensamento que prevalecia. O manto que eu decidi que ia envergar.
Apesar de ter vários amigos com espírito aventureiro, não foi fácil reunir quatro elementos para entrar naquele edifício abandonado comigo. Não queria correr o risco de levar alguém que pudesse desistir a meio. Ou logo no início! Foi uma escolha prolongada e cirúrgica, com as doses certas de loucura, audácia e resiliência.
No dia e na hora certa, lá estávamos os cinco, perante os portões de ferro que nos separavam do que quer que fosse que nos esperava lá dentro.
Não vou entrar em detalhes sobre o enredo e o desenrolo da atividade. Há surpresas, choques, situações inesperadas e muitas outras coisas que são para viver, exclusivamente, lá dentro. Vou apenas referir-me, por linhas genéricas, à mais óbvia das questões que devem estar a povoar a mente de quem está a ler isto: “Mas que evento é este e porque é que este gajo se meteu nisto?”.
O evento intitula-se “Trauma” e retrata um espécie de prisão clandestina em cenário de guerra onde são cometidas atrocidades. Os prisioneiros têm de sobreviver à sua “estadia” lá.
Todos já lemos notícias ou vimos documentários sobre as prisões militares de Guantánamo (Cuba), Bagram (Afeganistão) e, especialmente, Abu Ghraib (Iraque). Nesta última, foram cometidos milhares de crimes durante décadas por parte do regime de Saddam Hussein, onde a tortura e as execuções diárias de homens e mulheres eram quotidianas. Na entrada do novo milénio, foi palco de inúmeros crimes de guerra por parte do exército americano, que incluíram tortura, abusos vários e até mortes durante interrogatórios e que culminaram nas condenações de vários militares.
São locais infernais onde a única lei é a vontade dos captores. Onde as pessoas entram sem fazer ideia do que lhes vai acontecer. E não são apenas terroristas ou soldados inimigos que lá entram. São aprisionados imensos cidadãos inocentes, só porque sobre eles recaiu determinada suspeita, pouco ou nada empírica. “Ele tem ar de suspeito”.
Por mais vívidas que sejam as descrições nas reportagens que lemos, nunca temos verdadeiramente ideia do que é vivenciar estas situações. Este evento permite-nos um pequeno vislumbre do que é passar por isso. Num ambiente controlado e em plena segurança, podemos sentir na pele essa gélida incerteza de quem entra num antro dantesco destes sem fazer ideia do que lhe vai acontecer. Se é de dia ou de noite lá fora; se sente dor ou se o seu corpo apenas já se habituou a ela; se os traços na parede marcam horas ou dias; se as recordações confortantes são reais ou, afinal, apenas ilusões imaginadas; se respirar vai ser uma realidade no dia seguinte. Tudo isso, não nos limitamos a ver ou a testemunhar. Sentimos!
É uma experiência dura, agressiva, visceral. É uma experiência de consciencialização, que nos sublinha a sorte que temos em viver numa realidade distinta, onde estas situações não existem, e nos dá a genuína noção do que outras pessoas passam só porque tiveram o azar de nascer noutras latitudes do globo. É uma experiência de espírito coletivo, que nos mostra que o esforço, o ânimo e a partilha conjunta dos desafios os torna, invariavelmente, mais pequenos. É uma experiência de superação, que nos revela que somos sempre capazes de superar mais do que aquilo que julgamos conseguir. Que nos prova que, afinal, há mantos que não se conseguem rasgar.
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