Énoite cerrada, mas os clarões dos relâmpagos fazem parecer que o sol ainda se debruça sobre aquele sinuoso asfalto no norte de França. O Puto tenta a custo manter a sua scooter na estrada, mas os ventos são tão fortes que por vezes tem a sensação que está a conduzir inclinado, num ângulo de 45 graus, uma espécie de ‘moonwalk’ sobre rodas. Mas não há lua nesta noite, o céu está negro e denso, carregado de água que lhe cai vigorosamente em cima e lhe cobre a viseira do capacete. Tentara conduzir com ela aberta, mas o vento chicoteava-lhe os olhos castanhos ao ponto de os tornar vermelhos. Cego de uma forma e de outra, considera a primeira opção um mal menor. Percorre cerca de meio quilómetro nessas condições, até que a sensação de desequilíbrio deixa de ser uma sensação. Sente a motorizada a fugir e a ziguezaguear no alcatrão encharcado. Não sabe quanto tempo durou esse bailado aterrador, mas sabe que o levou para a via contrária, pois o olhar vislumbrou a forma disforme do tracejado branco no chão. Felizmente a estrada está deserta, ninguém arrisca conduzir com aquela tempestade. Determinado, finca ambos os punhos no guiador e consegue direcionar a motorizada para a sua berma, retirando-a da estrada e detendo-a a poucos centímetros de um poste de betão de eletricidade. Mantém-se sentado na Peugeot com o motor a trabalhar. Precisa de tomar uma decisão. Está ainda longe da povoação onde pretendia pernoitar. Olha para o seu lado direito e vê apenas a silhueta sombria de um bosque. Tem noção que montar acampamento numa zona com árvores durante uma tempestade é um erro que se pode revelar fatal. Mas conduzir 20 quilómetros naquelas condições também. Opta pela primeira opção, mas tenta minimizar o risco. Atravessa com facilidade a pequena vala que separa a berma do bosque e entra com a motorizada na vegetação, que não é alta. Apesar de molhados, os galhos do mato rasteiro estalam à sua passagem. A cada solavanco pensa duas vezes.

“Que raio estou eu a fazer?”

“Franceses do caralho, não limpam o mato!”

“Vou lixar os pneus todos!”

Entre outros pensamentos que povoam a sua mente, enquanto procura sem grande expectativa uma clareira. O clarão de mais um relâmpago sinaliza-lhe uma área mais aberta. Não é o desejável, mas é o melhor que poderá encontrar. Retira a tenda da carga que transporta na extremidade do banco da scooter. Monta-a num frenesim, com os dedos gelados e a chuva cada vez mais forte. Retira os sacos-cama, a colchonete e os alforges da roupa e atira-os para dentro da tenda. Deita a Peugeot junto à entrada da tenda, para o proteger do vento e para proteger a própria scooter, que dificilmente se manteria em pé no descanso. Já dentro da tenda, vira o fato impermeável ao contrário, enrola-o e transforma-o numa almofada improvisada. A lanterna está sem bateria, mas a luz quase se dispensa, pois de minuto a minuto, os relâmpagos iluminam-lhe o interior da tenda. Tenta calcular a distância do epicentro da tempestade, recorrendo a um velho truque que o avô lhe ensinara na infância. Sob a turbulência daquela noite invernal de 2000, recorda a conversa com lívida nitidez:

“Quando vires um clarão, conta os segundos até ouvires o trovão. Se contares 10 segundos, não te preocupes que está longe, a cerca de 3400 metros de distância. Cada segundo corresponde a 340 metros. Isso acontece porque a velocidade da luz é mais rápida do que a velocidade do som”.

O exercício, no entanto, não o conforta. Não chega a dois segundos e ouve um estrondo que lhe deixa os ouvidos a zunir. Coloca os auscultadores, aumenta o som e deixa que a música lhe abafe a trovoada.

“O que tiver de ser será”, pensa. Rebola para o lado, esforça-se por adormecer. O sono não lhe faz companhia, ao contrário de um pensamento que já o visitara antes, ao longo dos milhares de quilómetros percorridos que o levaram até aquele ponto.

“Será que vale a pena estar a passar por tudo isto?”

Como em todas outras vezes, a resposta não se fez esperar e foi o melhor embalo que ele poderia ter. “Siga”.


Como tudo começou

A ideia despontou na cabeça de Ricardo Rodrigues em Agosto de 1998, enquanto passava as mãos por uma revista de motociclismo. Estava ansioso por ver o artigo sobre a Concentração de Faro, que ocorrera no mês anterior e onde ele marcara presença. “Será que apareço aqui?”.

Folheou a publicação com sofreguidão, mas não encontrou nenhuma foto sua. No entanto, um pequeno artigo numa coluna prendeu-lhe a atenção. Era uma referência à concentração de Elefantentreffen, na Alemanha, a maior da Europa. Suspendeu o olhar no artigo durante alguns segundos, até que bateu com a edição na mesa e disse, bem alto:

– Está decidido, para o ano vou à Alemanha!.

– Tu és doido, Puto! – disse um dos colegas do clube motard do GICA (Ginásio Clube de Águeda), que estava com ele na sala de reuniões do clube.

Ricardo Rodrigues sorriu duplamente. Por um lado porque sempre sorria quando ouvia a alcunha que carinhosamente recebeu do grupo, que já acompanhava desde os 15 anos. Por outro, porque sabia que estava convicto do que acabara de dizer. Sorveu mais um gole da Sagres e garantiu:

– Podes escrever o que eu te digo.

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Ricardo Rodrigues e a sua Peugeot “Buxy”

 

A dúvida dos companheiros não se fizera sentir por descrença no arrojo do Puto. Já o conheciam bem; a descrença tinha morrido no ano passado, quando ele percorreu 1200 quilómetros (ida e volta) para ir à famosa concentração de Faro – sentado no dorso da sua Scooter, a sua acarinhada Peugeot, que disputou a presença no evento com Harleys e outras motas de grande cilindrada. Sempre fiel, sempre descomplexada. Já tinha repetido a experiência este ano, já tinha ido a mais de 21 concentrações de Norte a Sul, oito delas, duas vezes. Mas todos esses quilómetros no lombo pareciam algo embaciados naquele instante, perante o ardor da aventura que se propunha a enfrentar: Nove mil quilómetros numa scooter, para ir e regressar ao sudeste alemão.

Digeriu a ideia durante uns meses. Sabia que uma expedição daquelas ia exigir um planeamento com grande antecedência. Para além disso, era menor, o que poderia revelar-se um obstáculo casos os pais discordassem da ideia. Optou por não lhes contar, para já.

Cinco meses depois, em Janeiro de 99, decidiu rumar à concentração dos Pinguinos, no miolo do norte espanhol, em Tordesilhas. Embora estivesse seguro do plano na Alemanha, decidiu fazer um outro antes, como preparação, teste e até por um certo simbolismo romântico. Afinal de contas, tinha sido naquela região que há cinco séculos fora assinado o célebre tratado que dividia as terras por descobrir do mundo em duas fatias, uma para o reino português, outra para o espanhol.

Também o Puto ia em busca do desconhecido. Da mais arrojada, impensável aventura que alguma vez imaginara. Encararia o sucesso destes 1300 quilómetros como um sinal que o seu desígnio maior valia a pena. E lá arrancou, no penúltimo Janeiro do milénio, rumo a uma ‘concentración motera’ que é considerada a maior da Península Ibérica. Coincidência ou não, foi a concentração que decorreu com menos desaires. Era o sinal que precisava.


Planeamento

Passou o resto de 99 a planificar a aventura. Comprou mapas, leu relatos, pesquisou sobre a história da concentração. Entre outros detalhes interessantes, descobriu a razão do batismo da concentração, que se traduz: “O Rali dos Elefantes”. Ganhou esta alcunha na sua primeira edição, em 1956, que visava ser um encontro exclusivo de motoqueiros que conduziam a Zundapp KS 601, uma moto ‘sidecar’ verde do pós-guerra alemão que, tradicionalmente, era conhecida por “Elefante Verde”. Os anos e as décadas foram passando, a concentração foi-se diversificando e é agora o destino anual de cinco a dez mil participantes, que se prontificam a enfrentar o rigoroso inverno da Bavaria com todo o tipo de motas de alta cilindrada. No primeiro mês do novo milénio, teria de ser a vez de uma scooter lhes fazer companhia. 

Também o Puto ia em busca do desconhecido. Da mais arrojada, impensável aventura que alguma vez imaginara

O Puto já tivera o sinal que precisava, mas ainda não tinha luz verde. A mudança do semáforo só ocorreria quando obtivesse os patrocínios que lhe permitiriam financiar a expedição.

Numa estimativa preliminar, imaginou a aventura em 400 contos, excluindo assistência mecânica e alguns materiais. Na companhia do seu companheiro de muitas estradas, Vasco, dirigiu-se ao importador oficial da Peugeot em Aveiro, mas não passou da rececionista.

Já estava a ficar desanimado, quando ouviu o amigo dizer:

– Eu conheço o tipo, é aquele que está a entrar agora.

O Puto não hesitou e abordou-o. Explicou-lhe detalhadamente o seu plano, informou-o da sua experiência nesse tipo de planos. E sublinhou o quanto positiva uma aventura destas poderia ser para a promoção da marca. Percecionou uma expressão intrigada no rosto do responsável, que rapidamente se desfez numa sugestão recetiva.

– Escreve uma carta a manifestar a tua intenção e redige um orçamento detalhado do apoio que pretendes de nossa parte. Deixas cá e eu apresento isso na próxima reunião da direção.

O puto apertou-lhe a mão e saiu, animado. Nessa mesma noite, redigiu uma carta, que terminou com este parágrafo:

“Dizem os veteranos nestas andanças que esta é a concentração mais difícil do mundo, devido às suas extremas condições atmosféricas. Pelo que conheço de mim – e pela experiência que tenho – isso não será um obstáculo para concretizar esta viagem”.

Reúne à carta de intenção um currículo com todas as concentrações percorridas com a sua Peugeot (modelo Buxy) até à data – cerca de quatro dezenas, nas quais percorreu 18.600 quilómetros – e o orçamento. Estimou a alimentação em 170 contos, a hospedagem em 130 e o gasto com os combustíveis em 100. 400 contos – numa estimativa que sabia ser algo otimista, mas era a isca que decidira usar –  que o separavam da sua aventura.

O dossier é entregue no dia seguinte, mas o Puto não quer ficar à espera da resposta. Contacta 30 empresas/entidades da região Centro a pedir patrocínios. Apenas quatro respondem, mas todas positivamente. Algumas dão material, outras, dinheiro.

Nessa altura já informara os pais que, desconhecendo os contactos estabelecidos, tinham recebido a informação com descrença. “Em breve isso passa-lhe”, terão pensado.

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Os cheques começam a chegar e a expressão parental muda de figura:

– O quê? Mas o gajo afinal vai mesmo?

Bem-disposto num bar, o Puto partilha o olhar estupefacto de ambos com os amigos, quando lhes mostrou a correspondência.

– Quando viram o graveto a chegar, nem queria acreditar – refere, perante mais um golo na cerveja, concluindo de seguida – Pá, estão apreensivos, é normal, mas sei que quando chegar a hora me vão apoiar.

Eram apoios encorajadores, embora no fundo o Puto soubesse que o patrocínio decisivo estava ainda por concretizar. Passa os dias seguintes com o ouvido no telemóvel e o olhar na caixa do correio. Quinze longos dias, até que emergiu uma mensagem do verde monocromático do seu Nokia: “Apoiamos em tudo!”. A resposta da Peugeot era a derradeira das certezas. “Já consegui, já nada me vai parar”.

No dia seguinte, descobre que o “tudo” ultrapassa todas as suas expectativas. Esperava uma fatia do que tinha orçamentado e manutenção da motorizada antes da partida. Obteve o orçamento na íntegra, uma revisão geral à motorizada, um fato de neve e assistência em todos os países por onde ia passar.

Fica combinado que tem de entregar a motorizada na Peugeot em meados de Novembro, onde ficará um mês, sendo que Janeiro é a data marcada para o arranque para a Alemanha.

Mas estamos em pleno verão e a tentação paira no ar. O Puto decide ir à concentração internacional de Sanchenxo, no noroeste espanhol. Mais seiscentos quilómetros e umas quantas histórias no currículo. Os meses do calor passam a correr. Em pleno fim de milénio, são muitas as conversas se prolongam pelas madrugadas dos cafés. O conflito em Timor Leste, a queda do avião que vitimou o filho de Kennedy, as profecias de Nostradamus sobre o fim do mundo, o bug informático 2k, a aguardada estreia de “The Matrix”, entre outras problemáticas em relação às quais o Puto parece imunizado. A aventura alemã povoa-lhe todos os pensamentos, todas as conversas. Começara a contagem decrescente.

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