O PUTO QUE CRUZOU A EUROPA NO DORSO DE UMA SCOOTER «II – A Partida»
O Puto esfrega os olhos. Não acredita que a sua Buxy é a mesma. Para além de ter efetuado uma revisão geral a todas as peças, a Peugeot instalou um conjunto de modificações na scooter que prometem ser bastante úteis. Colocaram um painel de plástico com iluminação junto ao visor, onde poderia ser encaixado o roadbook. Acrescentaram uma saída de isqueiro no painel principal onde, para além da chama, poderia ser carregada a bateria do telemóvel, ligada uma lanterna ou até alimentado um compressor portátil, instalado na lateral da motorizada. O Puto foi ainda surpreendido com um fato térmico vermelho, com botas a combinar, ambos forrados a neoprene para fazer frente às temperaturas negativas dos Alpes. “Estou ansioso por meter isto na estrada”, pensou, quando desembrulhou o presente de Natal antecipado. Falta menos de um mês para o arranque.
Rodagem
Contrariamente à expectativa inicial, a máquina não vai ser inaugurada na partida para a Alemanha. O Puto é aconselhado por um técnico da Peugeot a fazer uma viagem preliminar de rodagem, para preparar a mecânica renovada da scooter à violência dessa distância. Consulta o calendário de concentrações. Uma semana antes da data estimada da partida (18 Jan), tem a concentração dos Pinguinos, em Tordesilhas. Decide voltar a ir lá. Mais uma vez, Tordesilhas volta a ser um teste, uma derradeira etapa antes do sonho.
Tordesilhas volta a ser um teste, uma derradeira etapa antes do sonho
A palavra teste adequa-se mais do que nunca. O Puto não vai poder passar os 40 KM/hora na primeira metade da viagem. Ou seja, 600 quilómetros por estradas secundárias numa estimativa de 15 horas de viagem. Um verdadeiro teste à paciência e à determinação.
– Siga – afirma, mentalizado. Prepara a viagem em tempo recorde, inversamente proporcional à sua duração recorde. Arranca quando os primeiros raios de luz rasgam a noite. Chega a Tordesilhas de madrugada. Está estoirado, monta a tenda mas não vai dormir. Um espanhol reconhece o símbolo do grupo motard nas costas do seu colete. Aborda-o, descobrem que têm amigos em comum. Bebem uma cerveja junto à fogueira a poucos metros das tendas. O tema da grande viagem acaba por surgir.
– A los Elefantes verdes? Eres un tonto. La lambreta no llega allí.
– Espera e verás – afirma o Puto, acenando com a garrafa de San Miguel. Sorri perante a descrença, já se habituou a ela. Nunca a ignora, armazena-a num pote invisível, ao qual pretende recorrer nas horas de maior dificuldade, em busca de combustível motivacional. Recorda um artigo que leu numa revista do pai sobre a psicologia das cores. O laranja era a cor da descrença, do pessimismo. Sorri ao apelidá-lo, mentalmente, de “pote laranja”. Sabe que não terá dificuldade em atestá-lo.
Contempla por breves instantes aquele quadro. Ambos os companheiros da estrada estendidos ao relento, com as pernas esticadas e os pés aquecidos pela fogueira, as fagulhas que se elavam na noite invernal, tal como a suave arrogância do desígnio inimaginável daquele puto, o sonho impossível que paira sobre todas as atenções e se debruça sobre todas as convicções. Apetecia-lhe emoldurar aquele momento, capturar aquela sensação, aquele entusiasmo preliminar que embriagava cada célula do seu ser. Foi ali, numa noite emprestada pelo país vizinho, ao correr o zip e cambalear para dentro da tenda, que tomou consciência que estava a menos de uma semana da partida.
Artilhar a mota
Os últimos preparativos foram os mais intensos. Como decidir o que levar numa aventura de 30 dias – quinze de ida, quinze de volta – e que coubesse no assento de uma scooter? Começou por dispor material em cima da cama e rapidamente chegou à conclusão que eram coisas a mais. Ia ter de fazer concessões.
Tem dois alforges – cosidos pela tia numa espécie de tecido rígido típico das coberturas dos sofás – onde ia levar a roupa. Decide levar quatro mudas completas, não sabe se terá oportunidade de lavar/secar roupa com o tempo cinzento que se faz sentir. Decide juntar uma quinta, não cabe, retira-a. Enrola duas toalhas de banho e força-as para dentro dos alforges. Já não cabe lá mais nada. Amarrados com elásticos no corpo da mota, leva o saco da tenda, uma colchonete e três sacos-cama, que impermeabiliza com sacos pretos do lixo. Uma mala castanha de tiracolo – carregada com máquina e rolos fotográficos, documentos, papéis, canetas – serve de encosto no banco da scooter.
Os punhos da motorizada estão cobertos pelo mesmo material dos alforges, numa capa improvisada para proteger as mãos da chuva e do frio, presa ao guiador com várias voltas de fita-cola. Amarrado à tralha, leva ainda um cantil antigo em pele, “mais para o estilo do que para outra coisa”.
Passou os últimos dias a desdobrar-se em entrevistas para jornais e rádios locais. A curiosidade era grande e facilmente se alastrou, primeiro pela cidade, depois pelo distrito. Mais tarde, pelo país.
No penúltimo dia, sentou-se na sala de reuniões do Clube Motard do GICA e passou a tarde a organizar um dossier de viagem. Escreveu à mão todo o itinerário de ida e volta, com todas as cidades por onde ia passar e uma estimativa de todas as zonas onde iria atestar o depósito e passar as noites. Fez um levantamento dos parques de campismo das cidades espanholas, francesas, italianas, austríacas e alemãs que iria atravessar. Juntou ainda um mapa português, um ibérico, um francês e um de toda a Europa Ocidental. Por último, inseriu uma folha rasurada com vários contactos de amigos ou conhecidos que vivem ao longo do percurso.
Deitou-se cedo mas dormiu menos horas do que previa. A ansiedade mantinha-o acordado. “Cum carago, onde me fui meter? 18 aninhos e vou fazer uma coisa destas”, pensava, envolto numa mistura de receio com emoção, mas com uma vontade superior a tudo.
Dia D
A partida está marcada para as 20 horas. Durante a tarde, o Puto faz os últimos preparativos na mota. O depósito já está cheio, em ambas as faces dos alforges está bordada a bandeira portuguesa, e há mais um saco para juntar aos cerca de 50 quilos de bagagem. Foi cedido pela Câmara de Águeda e tem diversos materiais relativos à cidade (pins, brochuras, bordados, galhardetes) para serem entregues à organização do evento. Foi com algum assombro que constatou que a carga amarrada com cordas e elásticos duplicava a altura do assento da scooter em relação ao chão. “Não há-de ser nada”.
Deitou-se cedo mas dormiu menos horas do que previa. A ansiedade mantinha-o acordado.
Seguiu-se um lanche ajantarado de convívio no GICA com família e amigos. São muitos os abraços e as palavras de encorajamento, tais como os conselhos e as advertências. Ao descer as escadas, já em direção à mota, apercebe-se de um murmurinho à sua direita.“Não vai conseguir, vai dar o berro a meio, é muito quilómetro”. Sem que o emissor se aperceba, agarra na frase e enfia-a no pote laranja. “Levo comigo todo o combustível que puder”.
Arranque
O Puto está sentado na scooter. Acelera, sente-lhe o rugido. Estica-se para trás, sente o aconchego das tralhas que serão o seu mundo durante 30 dias. Todos esperam que ele arranque mas ele não levanta a âncora à mota. Durante um instante deixa-se abraçar pelos olhares de companheirismo e pela incondicionalidade do apoio, saboreia a antecipação, empolga-se com o ponto de interrogação que o irá acompanhar dia e noite a partir do momento que a roda se mover. Roda o acelerador e levanta os pés do chão. Entusiasmado como sempre, ansioso como nunca.
Para já ainda não segue sozinho. Ao todo são cerca de 30 motas e 10 carros que formam uma comitiva que o acompanham nos primeiros 20 quilómetros da viagem, até à Mealhada. É nessa cidade, com o som das buzinadelas e a intermitência dos sinais de luzes nas suas costas, que sente que a aventura começa verdadeiramente.
Chega a Coimbra rapidamente. Está habituado a fazer esse trajeto, há três verões consecutivos que ruma à concentração de Góis. É na cidade dos estudantes que sente necessidade de parar, para acondicionar a bagagem, que não pára de baloiçar. Muda alguns sacos de sítio, estica os elásticos. Aproveita também para atestar o depósito. A partir daí atravessa Góis, Pampilhosa da Serra, Castelo Branco, sempre sem parar.
Chega à pequena aldeia fronteiriça de Segura por volta das 23:30. Precisa de encontrar bombas de abastecimento. 600 escudos enchem o depósito, com seis litros de gasolina, que dão para percorrer cerca de 100 quilómetros. É fundamental que encontre as bombas abertas, pois a cidade espanhola onde pretende dormir, Cáceres, fica ainda a 84 km de distância.
Até aí tinha feito o percurso de memória, mas agora era preciso recorrer ao roadbook que tinha redigido. Procura a pasta, não a encontra. “Que raio, pensei que tinha deixado isso à mão”, pensa, mentalizado que vai ter de revirar a bagagem toda. A cada saco que abre, o receio adensa-se. “Queres ver?”. Quando retira as mãos do último, um arrepio gelado sobe-lhe pelas costas. Tinha-se esquecido da pasta na sala de reuniões do GICA. Voltar para trás não era uma possibilidade, teria de encontrar uma solução.
Mete-se a caminho, percorre a estrada silenciosa que atravessa a pequena aldeia e avista ao longe a luz do néon das bombas. “Estão abertas, óptimo”. Junto ao balcão do empregado estão três amigos, que lhe fazem companhia nestes momentos monótonos do último turno.
Vasculha a secção dos mapas, o mais completo que encontra é um ibérico. Quando o apresenta no balcão e pede para abastecer a scooter, a curiosidade instala-se. Uma pergunta, uma resposta, três, quatro, cinco perguntas, todas em simultâneo. A surpresa é geral e a emoção instala-se naquele pacato fim de noite do último estabelecimento com luz acesa na pequena aldeia fronteiriça.
O puto afasta-se, com essa pequena luz cada vez mais ténue nas suas costas, de depósito cheio e com o corpo aquecido pelo café que recebeu do quarteto seguro, juntamente com o voto uníssono de “boa sorte”.
Reduz a velocidade quando vê a silhueta escura da ponte romana sobre o Rio Erges, que separa Portugal de Espanha. Trava, desliga a motorizada. Deixa-se envolver pelo silêncio da noite invernal, uma noite solitária, anónima, perdida no meio do nada. Os candeeiros de iluminação estão desligados e as nuvens cinzentas cobrem o luar. Escuridão, silêncio, uma aragem fria que lhe toca no rosto e um sentimento dividido que lhe toca na alma. Deu o passo e agora está ali, prestes a atravessar a primeira de cinco fronteiras que o separam do seu destino final.
Por um lado está animado com esta primeira etapa, por outro está envolto em alguma nostalgia, por saber que assim que atravessar aquela fronteira, estará 30 dias sem avistar o território do país que tanto ama. Mete as mãos no bolso do casaco e retira um walkman. Avança a fita da cassete durante alguns segundos. Volta a reanimar a Buxy e atravessa a ponte, com a chuva que o seu fato térmico permite ignorar e com a voz de Paco Bandeira bem alta nos ouvidos.
“Ó Elvas, ó Elvas
Badajoz à vista.
Sou contrabandista
De amor e saudade
Transporto no peito
A minha cidade”.
© 2015 – 2019, Victor Melo. All rights reserved.
Que experiência fantástica! Só de saber que a aventura ainda só vai no início, fico com aquela sensação de “breathtaking”! Super bem descrita a situação, muito bem escrito. Aguardo ansiosamente pelo próximo capítulo do Puto!
É extraordinária a sensação quando se trespassam emoções da história para o leitor. Quando menos esperares há mais. 🙂
Brilhante!!! Posso dizer que estou oficialmente viciado nesta reportagem. Venha o proximo, de preferencia rapido…
Sinto-me um traficante privilegiado e motivado em passar mais “produto” para a rua. 🙂
Adoro pessoas com a coragem deste ‘‘puto”, é preciso gostar muito e
Ter espirito de aventura para fazer o que fez até agora,ansiosissimo pelos próximos capítulos pena que demora tanto,pagava para ler tudo de uma vez lol
Hummmmm… quanto? 😀