Era um Natal algures entre a minha infância e a adolescência. Lembro-me de olhar para o embrulho, que tinha a forma de um livro, torcer o nariz e deixá-lo para o fim. Mal eu sabia o que estava ali. Um mundo revestido a papel colorido e fita dourada. Quando me atrevi a explorá-lo deixei, desamparados e amontoados num canto, os Transformers e os Masters do Universo. Quando olhei para trás, já os passos se tinham transformado em jornadas.

Esses mundos eram os livros das Aventuras Fantásticas, de Ian Livingstone e Steve Jackson. Nessas relíquias interativas – com a sua famosa lombada verde pântano – o leitor tinha livre arbítrio. À medida que avançava nas páginas, podia escolher o que fazer: o caminho a seguir na bifurcação, a que portas bater, que conversas manter, se enveredar num atalho pela floresta ou seguir pela estrada, que ervas apanhar, que poções criar, se lutar, matar ou perdoar, enfim, as opções eram incontáveis.

Adorava lê-los (ou jogá-los, ambos os termos se aplicam) tardes inteiras, mas sempre ao ar livre. Fugia até ao bosque mais próximo, estendia uma manta no chão e permanecia entretido durantes horas encostado a uma árvore. Até porque esse cenário se adequava. A maioria dessas histórias – e as minhas preferidas – abordavam jornadas entre florestas e montanhas rumo a misteriosas povoações medievais, onde imaginava casas de pedra coberta de musgo e telhados de colmo, cujos âmagos prometiam uma estranha e apelativa mistura entre aconchego e decadência, entre a mais despojada das simplicidades e armários toscos de madeira cujas gavetas escondiam artefactos preciosos.


Havia uma exceção. A “Mansão Diabólica”. Nesse, imaginava um casarão frio e sombrio, mas sumptuoso. E lia-o de noite, sempre dentro de casa, pois metia-me um medo danado.
Foram esses dois autores que me apresentaram os ogres, os trolls, os druidas, os elfos, os duendes, entre imensas outras criaturas da mitologia nórdica, céltica e anglo-saxónica.

A nostalgia desses momentos longínquos envolveu-me como um denso nevoeiro numa tarde fria de Outono, já com 40 anos. Era domingo e chovia lá fora, cenário ideal para planos caseiros. Meti filmes e séries de lado e, por algum motivo, resolvi experimentar um videojogo chamado “The Witcher 3”.

A premissa era interessante. Gerat of Rivia é um witcher; humanos com capacidades sobre-humanas, a nível físico e sensorial, que são vistos como bruxos e olhados com desconfiança pela generalidade da população. Andam de terra em terra em busca de trabalho. E esse trabalho é ajudar as pessoas que são aterrorizadas por criminosos, entidades sobrenaturais, bestas e monstros.

Fiquei pasmado com a liberdade que temos para explorar todo um mundo e interagir com ele. Cada atitude tem o seu preço, cada escolha a sua consequência. Há uma complexidade no seu argumento que nunca vi em mais nenhum jogo. A especificidade de cada território, das suas geografias e climas, dos seus habitantes e das criaturas que povoam os seus pesadelos à noite. Há todo um folclore criado – recheado de seres, superstições e lendas – imaginado ao mais ínfimo detalhe. Tudo isto sob uma atmosfera fantástica com sabor a mundos antigos.

O desenvolvimento é impressionante, por milhares de quilómetros que se cavalguem, tudo é novo, arbitrário, espontâneo. Um ponto fortíssimo, que contrasta com outros jogos (como na saga “Assassin’s Creed”) onde prevalece uma tendência repetitiva na sua mecânica narrativa, seja nas missões como no progresso geral do jogo. Em “The Witcher 3”, isso não acontece. O progresso narrativo é recheado de complexidade, há sempre inúmeras situações novas para descobrir, dezenas e mais dezenas, se calhar centenas, de missões paralelas, que podemos ou não decidir enfrentar. Todas elas com as suas particularidades e todas com sabor a novidade. Cada vez que jogamos, em cada diálogo que mantemos, cada aliado ou inimigo que fazemos, cada mulher com quem dormimos, tudo tem consequências no desenrolo narrativo e no desfecho da aventura.



Esse videojogo “roubou-me” a totalidade dessa tarde de Domingo. Mas, apesar de ter estado amarrado e imobilizado no sofá, senti que tinha viajado por todo o lado. Quando um jogo tem esse condão, é admirável!

Algum tempo depois, foi com alguma surpresa que soube que a Netflix estava a preparar uma série sobre a saga. Não sabia bem o que esperar, mas fiquei algo reticente, talvez por estar ainda escaldado de adaptações cinematográficas trágicas a videojogos que eu admirava particularmente pelos seus ambientes, como “Alone in the Dark” e “Silent Hill”.

Embora a saga “The Witcher” tenha origem literária – criada pelo escritor polaco Andrzej Sapkowski nos anos 90 – e os seus volumes sejam obras de culto na Europa Central e de Leste, foi popularizada nas restantes geografias através dos videojogos, pelo que havia o risco de rentabilizar essa notoriedade recente com um produto mais plástico. Fiquei algo aliviado quando constatei que o nome Uwe Boll não constava nos créditos e ainda mais quando vi as primeiras imagens de produção. O facto de estar ainda ressacado com a ausência de “Game of Thrones” também contribuiu para a crescente curiosidade.


Dois anos depois, também num Outono, saciei-a com sofreguidão. Uma excelente produção, com uma recriação deliciosa dos ambientes e um argumento muito bem delineado, orquestrado por uma opção narrativa arrojada e muito interessante, onde linhas temporais dançam com a espontaneidade de folhas caídas ao vento.
Foi filmado em várias zonas da Europa de Leste e também nas Ilhas Canárias, de onde conseguiram extrair uma atmosfera lindíssima, recheada de melancolia medieval.

Henry Cavill, britânico nascido na ilha de Jersey, dá corpo a um extraordinário Geralt of Rivia. As expressões, o temperamento, o semblante “I don’t give a fuck”, que oscila entre verdade e a mentira, à medida que a história e as circunstâncias se desenrolam.

No jogo, os dias e noites correm em tempo real. Há uma opção para meditar, se quisermos avançar algumas horas. Fica a sensação de tê-la acionado ao ver esta série. Os oito episódios de “The Witcher”, como as tardes da minha infância a escolher páginas e rolar dados, passaram a correr. Isso deve-se à qualidade intrínseca da produção, mas, tenho noção disso, também às mãos da nostalgia. Essa artesã talentosa que transforma o tempo em barro e molda-o à sua vontade. Quando essa jarra estiver seca e rígida, metam-na nos alforges e levem-na convosco. Vai ser uma viagem longa até 2021.

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