UMA CAMINHADA NA FLORESTA DAS ALMAS PERDIDAS
Aquela noite de Outubro começava a cair, quando o estádio se levantou em peso num fervente aplauso. O Quaresma saiu do banco e começou a aquecer. Eu estava lá no meio, de cachecol ao pescoço, a contribuir para o barulho. Bati palmas com toda a força, com um sorriso do tamanho da Invicta, muito longe de imaginar que a 70 quilómetros de distância, um intruso estava escondido na casa onde cresci.
Poucos minutos passaram até o Quaresma ser chamado pelo treinador do F.C. Porto. Ia entrar na partida. Mais uma vez, o trovão das palmas. E não só. 40 mil pessoas gritavam a plenos pulmões o nome de um ídolo cuja utilização era cada vez mais escassa no reino do Dragão. Eu também gritei. Como poderia não gritar? Em Águeda, o intruso percorria a sala onde eu via desenhos animados, onde festejei tantos aniversários, onde vivi tantos anos felizes. Há algo que reluz. É aço, é frio. O intruso tem uma faca na mão.
Uma mão cheia de minutos. Bastaram cinco minutos para os astros se alinharem numa noite aparentemente imaculada. O Quaresma recebe a bola de Brahimi no bico da área, finta um adversário, flete para o centro e dispara com o pé direito. O Guarda-redes do Atlético de Bilbao ainda toca na bola, mas o golo é imparável. Nada poderia parar aquele golo, não naquela noite. Saltei, vibrei, se calhar até chorei. Choraram todos. Lágrimas de alegria, pois um momento daqueles apaga qualquer tristeza. Tanto mais se apagaria naquela noite.
O cigano corre 40 metros. É travado no centro do relvado, pelo abraço do Danilo. Puxa violentamente a camisola com ambas as mãos em direção ao céu, num misto de raiva e euforia. Estica-a tanto que quase a rasga. Nesse momento, já o sangue tinha inundado o chão da cozinha.
O sopro final zuniu 15 minutos depois. O homem de negro encheu o peito e descarregou os pulmões no apito. Mais um trovão. Mais um, numa tempestade que parecia tão perfeita.
Não abandonei a bancada, deixei-me ficar. Os instantes morrem rápido e eu queria perpetuar aquele. Acho que choveu nessa noite. E eu, que detesto conduzir com chuva, percorri animado cada quilómetro do alcatrão encharcado da A1 rumo a Águeda, a falar pelos cotovelos sobre a partida. Uma partida que eu nunca iria esquecer.
A chuva neste momento já não era tão agradável. Escorria do telhado e eu não encontrava a chave. Até que me lembrei que tinha deixado a porta destrancada. Estranhei ver a luz desligada. “Ainda nem sequer são 23 horas”. E, no entanto, ali dentro, as horas tinham parecido dias. Arrastavam-se, vagarosas, penosas. Talvez tenham passado semanas para quem as viveu. Décadas, quem sabe.
Avancei até à sala e estava tudo fora de sítio. O sofá arrastado, o candeeiro tombado, os quadros no chão, onde também repousam pequenas poças de um líquido qualquer, cuja cor é dissimulada pela tijoleira cor-de-vinho. Abaixo-me, passo o dedo, o líquido é morno. Quando viro a ponta do indicador para o meu rosto, noto também que é espesso, vivo; vermelho.
Sinto um toque no meu ombro direito. “Não te preocupes que vamos por tudo no sítio”, ouço, numa voz familiar. Volto-me e não vejo ninguém. O José Pedro Lopes já se dirige, apressado, para outro lado qualquer da casa, não sem antes se virar e complementar: “Ah, e isso sai tudo com água”.
É já o quarto dia de filmagens do filme “A Floresta das Almas Perdidas”, o terceiro na minha casa, que cedi para parte da produção deste projecto. E que projecto! Um filme de terror português. Um cenário raro no panorama cinematográfico nacional, um sonho difícil de alcançar que uma equipa jovem decidiu perseguir. Na algibeira, um orçamento irrisório e uma vontade abastada.
Sentada no sofá, Lígia Roque aproveita agora para relaxar. Morreu 11 vezes na cozinha até o derradeiro take definir o assassinato perfeito. A faca era retráctil, mas os golpes nas costelas foram reais. Ao seu lado, o intruso, que afinal era uma intrusa, Daniela Love, que descansa alguns minutos antes de atacar a próxima vítima. Sim, vão ser assassinadas mais pessoas na minha casa, mas isso será a sala escura do cinema a contar.
Há várias coisas que me ligam a este projecto. O facto de ser amigo pessoal do realizador, José Pedro Lopes e da produtora, Ana Almeida. Ter sido filmado na minha cidade natal, Águeda; na pacata povoação onde passei a infância e a adolescência, Vale Domingos; na casa onde cresci; na serra que tantas vezes percorri, Caramulo. E, por último, para além de todo um grupo fenomenal que tive a sorte de conhecer e acompanhar, por uma importante lição que aprendi durante a caminhada nesta Floresta.
Tudo começou algures em 2012, quando o José Pedro Lopes me abordou com uma ideia para uma longa-metragem. Alguns meses depois, já no ano seguinte, enviou-me o argumento e pediu-me ajuda no scouting (procura de localizações para filmar). A minha casa ele já tinha em vista, mas precisava de uma floresta densa e sombria.
O cenário da “Floresta das Almas Perdidas” é inspirado em Aokigahara, uma vasta e densa floresta no sopé do monte Fuji, no Japão, que se tornou conhecida pela prática do suicídio.
A relação da morte com a floresta é secular. No Japão feudal, era lá praticado o Ubasute, uma forma tradicional de eutanásia, onde um familiar doente ou idoso era abandonado para morrer num local remoto. Com a passagem dos anos, a floresta ganhou fama de assombrada. Nas povoações próximas, acreditava-se que a Aokigahara era povoada por milhares de Yurei, espíritos confusos, tristes ou revoltados com o seu cruel destino. Ninguém ousava lá entrar, a não ser para morrer.
Em 1960, o escritor Seichō Matsumoto publica o livro “Kuroi Jukai” (traduz-se: Mar negro de árvores), que conta a história de dois amantes que se decidem suicidar em Aokigahara, por acreditarem que esse acto trágico-romântico perpetuaria o seu amor por toda a eternidade.
Num fenómeno de culto literário muito similar ao que viria a ocorrer mais tarde com o livro do italiano Frederico Moccia, “Ho voglia di te” (Quero-te a ti) – que iconizou o acto de prender um cadeado numa ponte (a tradição começou numa ponte romana e rapidamente se espalhou por todo o mundo) – o livro de Matsumoto enraizou ainda mais a negra iconicidade do local. Desde então, a floresta tornou-se um destino popular para o suicídio, com dezenas ou centenas de ocorrências por ano. É frequente o livro de Mastumoto repousar nas mãos dos mortos.
Devia ter 17, talvez 18 anos quando entrei lá pela primeira vez. Lembro-me de pousar a mochila na caruma e olhar para cima, espantado. Parecia de noite e no entanto o sol ardia no céu. As árvores eram tão altas e as suas copas tão densas que filtravam quase toda a claridade. Quando o sol estava a pique, a floresta era perfurada por inúmeras lâminas de luz, que ziguezagueavam à nossa volta. Durante o resto do dia, o escudo verde afastava essas investidas. Apelidei-a de “floresta negra”, em honra da congénere alemã. É um pequeno bosque no caramulo, à esquerda da subida final que leva ao Cabeço da Neve.
Quando li o argumento, imaginei de imediato esse local como um dos palcos que o José Pedro Lopes pretendia para o filme. Penso que ele se apaixonou por ele na primeira visita. Seguiram-se mais visitas, viagens, carros abarrotados com material, enforcamentos, filmagens, entre simpáticos almoços num restaurante familiar que nos servia a qualquer hora, desde que a refeição fosse rojões de porco.
Anos depois, na estreia no Fantasporto’17, eu iria estar colado à cadeira do Rivoli e absolutamente deliciado com a forma como o José Pedro Lopes e o Francisco Lobo (director de fotografia) captaram a atmosfera do local. É difícil descrever todo o trabalho artístico, poético, estético, semântico que conseguiram extrair daquele pequeno bosque. Nem faz sentido descrever. Há coisas que existem para ser experienciadas na tela e não na página de um texto. E, como vão descobrir mais lá para a frente, telas não vão faltar.
Uma espessa gota vermelha estatela-se na tijoleira branca. Segue-se outra. E outra. A ferida é grave. “Tem de sangrar um pouco mais”, alerta o realizador. Pedro Santasmarinas – assistente de realização – surge de imediato com um garrafão nas mãos, que parecem as de um assassino psicopata, “ensanguentadas” dos dedos aos cotovelos. Sorri ao verter mais algumas gotas. Foi ele que criou o sangue artificial que está a ser usado no filme. Inspirou-se na receita usada pelo Sam Raimi no clássico “Evil Dead” (1981). Xarope de milho, corante alimentar vermelho, natas não lácteas e uma pequena quantidade de corante azul. Sendo o filme a preto e branco, é necessário escurecer um pouco mais o sangue. O realismo impera na “Floresta das Almas Perdidas”. O mesmo realismo que na noite seguinte iria causar calafrios à equipa de produção.
Passam poucos minutos das 22 horas e um nervoso lamurio ecoa por toda a povoação de Vale Domingos. É um som estranho, uma espécie de choro motorizado.
Estão a filmar um atropelamento e nas imagens no interior do carro é preciso captar a Daniela Love ao volante. Para além da vítima que está prestes a ser passada a ferro no asfalto, só há mais um pequeno obstáculo: A actriz não sabe conduzir. Percorre algumas dezenas de metros com o acelerador a fundo na primeira mudança. O carro queixa-se, mas o espetáculo tem de continuar. A equipa de imagem faz a sua magia e a cena é bem-sucedida. Seguem-se as sequências em velocidade. O realizador passa para o volante. O carro é dele. A fome de realismo também. A produtora e esposa, Ana Almeida, vê-lhe a determinação no olhar. “Tem cuidado, Zé”, alerta. O condutor faz um aceno, engrena a marcha-atrás até ao ponto de partida.
É uma recta longa e só com mato à volta, escolhida a dedo para esta cena. A aceleração é feroz, o ponteiro do conta-quilómetros sobe a pique e o Mercedes passa pela equipa como uma flecha. Take 1! Ao terceiro ou quarto take, surgem três indivíduos. Um deles, traz uma carabina de pressão de ar ao ombro.
Surpreendida e expectante, a equipa de filmagem aguarda em silêncio, quebrado pelo indivíduo mais alto, após uma longa e cinematográfica baforada no cigarro: “O que se passa por aqui, hã?”. O José Pedro Lopes cumprimenta-os e contextualiza toda a situação. O trio explica que os habitantes estavam a estranhar as constantes acelerações e travagens a uma hora daquelas e resolveram investigar. As casas mais próximas estão a algumas centenas de metros, mas o carro está farto de gritar, seja em primeira ou quinta velocidade. São convidados a ficar e observar. Anuem e permanecem durante um novo take, compenetrados num silêncio autoritário antes de regressarem à escuridão da reta, com a arma ao ombro e o sentimento de dever cumprido.
Após me contar o episódio, o José Pedro Lopes fez sempre questão que eu estivesse presente nas filmagens exteriores naquela localidade, para estabelecer o “elo diplomático”.
Seguiram-se várias filmagens na região. Em Águeda, no Jardim da Venda Nova, em colaboração com o Coletivo Nora, projecto artístico-cultural que requalificou esse espaço; em Lamas do Vouga, na Ponte Velha do Vouga, cujo tabuleiro central desabou numa tempestade em 2011; no Cabeço do Vouga, na antiga ponte romana, também conhecida por Ponte Velha do Marnel.
Depois vieram outras localizações, outras viagens. A mais longa levou a equipa até Espanha, ao parque natural de Sanabria. Uma das cenas cruciais do filme foi filmada lá, no lago glaciar, onde a actriz Lília Lopes mergulhou sob temperaturas negativas.
O trabalho de pós-produção foi longo. O filme mudou algumas vezes na mesa de edição. Havia três finais filmados e o que acabou por ser escolhido nem sequer estava no guião. Foi filmado no Verão de 2016 e adicionado ao filme, que já estava todo editado.
O enredo de “Floresta das Almas Perdidas” – que como já devem ter reparado eu tenho evitado descortinar ao longo deste texto – possui motivos e intenções implícitas que se descobrem nos pequenos detalhes. Esse novo final, acentua essa descoberta.
É assim que esse filme deve ser experienciado. Como uma descoberta. Atravessar a cortina e sentar sem imaginar a lufada de ar fresco que se vai sentir na pele, no cabelo… ou na espinha!
A Floresta é dramática mas também arrepiante. Por vezes quente, outras gélida. Dualística, como o preto e o branco; mais do que estética, uma opção semântica, que enfatiza a melancolia de toda a história. E nesta história, como ponto de partida, basta a tagline do filme: “Dois estranhos conhecem-se no local mais triste do mundo, mas um deles está feliz por lá estar”.
Embora a ação de “A Floresta das Almas Perdidas” não decorra na floresta de Aokigahara, inspira-se nela para criar o seu palco, uma floresta fictícia portuguesa com as mesmas idiossincrasias.
Durante a fase de produção do filme, foram anunciadas duas produções de Hollywood a abordar a famosa floresta dos suicídios: “Sea of Trees”, de Gus Van Sant e “The Forest”, de Jason Zada. Ambos acabaram por estrear primeiro (2015 e 2016) do que o filme português (2017). Não é difícil de prever a primeira reação de quem toma conhecimento disso: “Oh, os portugueses afinal não foram originais, a ideia para aquele setting tão inédita e adequada ao filme afinal foi copiada aos estrangeiros”. É natural, eu próprio pensaria o mesmo, com os indícios que teria à mão. No entanto, neste caso tenho conhecimento de causa para afirmar que os indícios, por mais óbvios ou flagrantes que possam parecer, estão completamente despidos de qualquer validade.
Eu ouvi a premissa portuguesa em finais de 2012. Sei que o realizador se inspirou no sismo do Haiti em 2010, impressionado com a quantidade de oportunistas que surgiram no rescaldo da tragédia, com histórias de tráfico humano e raptos de pessoas por parte de quem vinha de fora.“Queria explorar a ideia que existe sempre alguém que tenta tirar vantagem, um oportunista macabro qualquer, mesmo nos cenários de maior crise humanitária”, afirmou José Pedro Lopes.
E para o palco da sua história, inspirou-se em Aokigahara. No início de 2013, eu já tinha o guião nas mãos. Só em Dezembro desse ano é que foi tornado público o projecto de Gus Van Sant, cujas filmagens começaram no verão seguinte. O projecto de Jason Zada, surgiu um ano depois.
Não é que isto seja relevante para o usufruto do filme. Não é, minimamente. Mas é um exemplo que nos demonstra que por vezes os indícios, por mais evidentes que pareçam, estão errados e induzem-nos em erro. E essa indução pode levar-nos a ser tremendamente injustos nas conclusões precipitadas que tiramos e cimentamos nas nossas convicções. “É mais do que óbvio”, “Tá na cara!”, “Oh, claro! És crente?”, entre inúmeros outros blocos que cinicamente assentamos de forma tão sólida mas que se desfazem em pó ao primeiro sopro da realidade.
E a realidade tem sido amiga da “Floresta das Almas Perdidas”. Foi aplaudida de pé na sua estreia no Fantasporto. Viajou por festivais ingleses, australianos, americanos, suecos, camaronenses, eslovenos, suíços e espanhóis. Venceu dois prémios de “Melhor Filme”, no Festival de Cine Fantástico de Bilbao e no Triple Six Horror Film Festival, em Manchester. Fez furor em vários websites e e-zines de cinema fantástico. Teve uma crítica bastante favorável na Variety e foi considerado um dos melhores filmes de terror de 2017 pela Newsweek.
Estreia esta semana nos cinemas nacionais. Atreves-te a percorrer a floresta?
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