UMA NOITE NA ILHA
Durante anos habituei-me a ver a silhueta misteriosa daquela ilha que se avistava à distância na estrada à saída de Baiona. Era comum ir a essa cidade costeira da Galiza, sempre que visitava os meus amigos de Viana do Castelo. Por vezes, a ilha estava envolta em neblina, o que lhe adensava ainda mais a aura misteriosa. Nas viagens de regresso, parava sempre o carro num pequeno planalto de terra junto à estrada que percorre a costa em direção ao Sul. Saia cá fora e prometia: “Um dia vou aí”. Os anos foram passando e a promessa também.
Um dia, ou talvez uma noite, inspirado pelas páginas de “A Caminho dos Trinta”, uma reportagem de José Manuel Barata-Feyo que li e reli mil vezes, decidi. “Vou fazer os meus trinta anos na ilha”.
Comecei de imediato a fazer pesquisas. Descobri três informações importantes.
A primeira: não era uma ilha, mas três, estando duas ligadas pelo areal de uma praia e uma espécie de ponte de pedra que ficava inundada quando a maré enchia ao anoitecer.
A segunda: chamavam-se Islas Cies.
A terceira: A única forma de pernoitar na ilha era tendo uma reserva no parque de campismo. Caso não exista essa reserva, somos obrigados a tirar o bilhete de ida e volta no mesmo dia. E o parque estava lotado.
A minha ideia era, obviamente, pernoitar na ilha. Logo, ia ter de arranjar uma forma de contornar essa regra. “A ilha é enorme, tem florestas e montanhas”, pensei. “Se passar a noite no meio da natureza, até vai ser mais giro, é como se fosse um náufrago, a explorar uma ilha selvagem à procura de um abrigo natural”. Estava decidido. O detalhe do bilhete era um obstáculo que agora não importava, na altura pensaria em algo e resolveria isso na hora, com a típica lábia espontânea lusitana.
Foi fácil “vender” a ideia aos amigos. Éramos seis. Apenas um ficou algo reticente com a questão dos bilhetes, um detalhe que a atratividade do plano rapidamente o fez relativizar e, por fim, esquecer.
E assim, numa manhã de Agosto de 2007, seis marinheiros lusos zarpavam do porto de Baiona rumo a essas ilhas com nome celestial que há tanto tempo nos reluziam os pensamentos.
O jornal “The Guardian” tinha acabado de presentear a praia principal da ilha – Playa de Rodas – com o título de “melhor praia do mundo”. Assim que saí do barco, percebi porquê. A areia incrivelmente branca e fina, o mar em tons que ondulavam entre o verde esmeralda e o azul turquesa, a transparência das águas, a floresta atrás do areal, as montanhas escarpadas que se recortavam nas extremidades da ilha. Uma autêntica ilha selvagem das Caraíbas neste cantinho do Atlântico.
Após passar o dia na praia, ao entardecer fomos comprar alguns mantimentos numa pequena mercearia, a qual se alcançava através de um caminho de areia no meio de vegetação luxuriante. Tudo, mas mesmo tudo soava a tropical. Já abastecidos, começámos a subir um trilho ladeado por árvores densas, em direção à encosta Sul da ilha mais pequena (chamada “Ilha do Meio). Após mais de uma hora de caminhada, encontrámos um planalto com um exíguo posto de observação de aves, construído em madeira e com uma enorme janela panorâmica virada para o mar. A forma cúmplice como sorrimos uns para os outros era um indicativo claro que tínhamos encontrado “a cabana” onde iríamos passar a noite. Parecia perfeito, quase predestinado. Na altura não fazia ideia que havia uma possibilidade muito melhor à nossa disposição.
A “gruta” do ermita da ilha
Após inúmeras peripécias demográficas ao longo dos séculos, as Ilhas Cies deixaram de ser habitadas nos anos 60. Em 1980, tornaram-se num parque natural. Na época da Primavera/Verão, vivem lá os funcionários dos três restaurantes, mercearia e parque de campismo. No resto do ano, é uma ilha deserta, literalmente.
Nos anos 90, foram visitadas por um jovem espanhol chamado Germán Freijeiro. Após explorar a ilha, instalou-se nas ruínas de um calabouço de um antigo quartel de carabineiros, hasteou uma bandeira pirata no telhado e decidiu que ia passar ali o resto dos seus dias.
Ninguém sabe o que o fez tomar essa decisão. Talvez ansiasse por aventura, talvez se quisesse sentir livre. Talvez o atraísse o passado da ilha, recheado de memórias e histórias de piratas e corsários. Talvez tenha ouvido o rumor desses sonhos antigos de liberdade selvagem que alguns juram ainda ecoar pela ilha nas noites de mais vento.
Bloco a bloco, Germán transformou as ruínas numa casa. Plantou uma horta e várias árvores de fruto. Tinha galinhas que lhe davam ovos, pescava, vivia da ilha.
Contrariamente aos habituais ermitas, Gérman era sociável e hospitaleiro. Abria as portas do seu rústico lar a todos os visitantes. Guardas florestais em missão na ilha, marinheiros, pescadores, turistas. Conversavam noite fora, nas dunas do seu quintal, sob as estrelas e a brisa do Atlântico.
Parecia um naufrago, moreno, barbudo, com cabelos louros desgrenhados, mas impecavelmente amarrados com um laço e quase sempre vestido com uma camisa xadrez com as cores já desbotadas. Germán ganhou a simpatia de todos. Deixou de ser Germán. Na ilha, todos o conheciam como El Chuco. O anfitrião de estranhos.
Acordámos com o cheiro a areia molhada. Choveu quase toda a noite, mas o azul regressou ao céu ao amanhecer. Após alguns minutos a contemplar a vista que sete ou oito horas atrás nos tinha sido ocultada pela escuridão, começámos a descer, rumo à praia. Mas a ilha tinha despertado rabugenta. A meio do caminho, a chuva regressou. Já meio encharcados, parámos na esplanada coberta de um café para tomar um chá quente.
Passamos o resto da manhã e parte da tarde na praia, até entrarmos sorridentes no barco, felizes por ter conseguido ludibriar a regra dos bilhetes com a desculpa, esfarrapada como as vestes de um naufrago, de que nos tínhamos orientado pela hora portuguesa dos nossos relógios e, por isso, perdido o último barco do dia anterior. E que não tínhamos mais dinheiro connosco nem outra forma de sair da ilha. A única solução era converter os nossos bilhetes e apanhar boleia na embarcação que estava prestes a partir. “Vale”, disse o tipo, com um sorriso matreiro, como se tivesse topado o plano dos portugas mas não se importasse, minimamente.
Já durante a travessia, com a silhueta das ilhas pelas costas, sorria para o mar, envolto numa espécie de sentimento de missão cumprida.
Ignorava a existência do El Chuco e o trágico destino que o assolaria. Ignorava a coincidência por trás do sítio onde tinha tomado chá. E ignorava que regressaria nove anos depois e iria explorar cada recanto da ilha e conhecer todos os seus segredos. Exceto um.
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